Jojó de Olivença

Da Bahia para o mundo

Na série de reportagens que comemora a Consciência Negra no Waves, baiano Jojó de Olivença fala sobre sua carreira, vida pessoal, projeto social e outros temas.

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Jojó em ação no ISA Masters 2013, Montañita, Equador.Tweddle / ISA
Jojó em ação no ISA Masters 2013, Montañita, Equador.

Em mais uma entrevista da série em homenagem ao surfistas negros do Brasil, iniciada no mês da Consciência Negra, Jocélio de Jesus, conhecido como Jojó de Olivença, conversa com o Waves.

Para muitos, ele é o melhor surfista preto brasileiro da história. Nascido no interior da Bahia em 1967, Jojó cresceu em Olivença, daí veio o nome pelo qual ficou conhecido no cenário do esporte. A paixão pelas ondas começou quando ainda era adolescente e, com a ajuda de amigos e turistas, ele ganhou o primeiro equipamento para se dedicar aos treinos.

Não demorou muito para Jojó começar a chamar a atenção de empresários e da imprensa. Ele superou diversos desafios, como o preconceito por ser pobre e a falta de recursos, para sagrar-se bicampeão brasileiro de surfe, em 1988 (primeiro nordestino a conquistar o brasileiro) e 1992. Após o primeiro título decidiu mudar-se para o Guarujá (SP), onde reside até hoje e criou o Projeto Ondas.

Entrou para o Tour Mundial em 1994 e lá permaneceu por mais quatro temporadas. Logo no primeiro ano do CT, conseguiu ser Top 15, com o 11° lugar na temporada. Jojó é ídolo e referência para muitos meninos e meninas.

Na conversa a seguir, Jojó conta um pouco da sua trajetória, fala sobre sua ONG, a bateria em que venceu Kelly Slater, olhares que recebia à época que competia e mais.

Você tem uma carreira consolidada, além de ser ídolo de muitos surfistas que começam no esporte. Como é para você se tornar uma referência para os mais jovens?

A gente vai vivendo e procurando dar o melhor de nós em tudo que a gente faz, sendo exemplo, procurando ser o exemplo. Procurando sempre dar os melhores exemplos. E a gente não faz ideia de que as pessoas realmente estão se espelhando na gente, o mundo está tão mudado. Mas é muito bom saber que em toda essa minha trajetória a gente vê uma história que vem sendo observada pelas pessoas, que acabam seguindo isso como referência. Então, além de ser muito bacana, é uma responsabilidade muito grande que a gente traz.

Jojó de Olivença, Top 16 do CT em 1996.

Nos anos 80 e 90 você ganhou diversos títulos, além de alcançar o Top 16 do CT em 1996. Não era comum um negro vencer tanto e ser protagonista naquela época. Como foi para você ser um dos pioneiros?

No Brasil acho que não tinha só eu de pele escura, de negro, como bom surfista. Eu só acho que foi muito importante ter toda essa essa trajetória de sucesso no Brasil, no surfe, mas para mim, naquela época, na década de 80 e 90, acho que o maior protagonismo que aconteceu naquela época não foi nem tanto pelo fato de ser negro, e sim pelo fato de me tornar um cristão.

Isso me fez ser uma referência ainda maior, porque considerando que a gente vinha de uma era de muito preconceito contra o próprio surfe, pelo rótulo que trazia na sociedade e tudo mais. Acho que como surfista cristão de destaque naquela época foi o maior protagonismo para mim, foi a marca que a gente trouxe e que ampliou bastante. Foi aumentando o número de surfistas cristãos no cenário e acredito que foi o que contribuiu muito até para melhorar a imagem do esporte perante a sociedade, que até então era um esporte de vagabundo, maconheiro, etc.

Jojó de Olivença na capa da Fluir, dezembro de 1988.

Você foi da equipe Billabong durante um período em que o surfe era muito visto em revistas e filmes. Essa visibilidade trouxe bom retorno no âmbito financeiro e esportivo?

É sempre bom a gente ter o apoio e o patrocínio de uma marca grande de conceito, embora na época do início do meu patrocínio, aconteceram duas coisas interessantes. Foi o meu primeiro maior patrocínio de confecção, a Billabong estava nascendo no Brasil, por volta de 85 e 86, mas ela não era regulamentada ainda pelos gringos de forma internacional, ainda não havia uma conexão com os gringos lá fora.

Mas foi uma marca que cresceu muito no Brasil e com certeza isso agregou muito na minha carreira e trouxe outros parceiros. Através do patrocínio da Billabong, sendo muito forte, a minha vinda para São Paulo foi por meio da marca. Eu saí da Bahia para morar no Guarujá em 1989.

Isso tudo agregou muito na minha carreira, foi um novo degrau a vinda para São Paulo. E, com certeza, como eu já disse: com uma marca grande melhora tudo, atrai mídia, traz mais visibilidade, credibilidade, isso agregado ao talento e a boa performance nos eventos, me fez um campeão, um vencedor.

Nos eventos que corria no seu auge e nas conquistas, você chegou a reparar olhares de discriminação?

Discriminação, de verdade, eu nunca percebi. Eu sempre fui uma pessoa muito simples, sempre sorri para todo mundo, sempre dei atenção para todo mundo. Não conseguia perceber nenhum tipo de maldade desse tipo nas pessoas, até mesmo porque eu nunca acreditei em discriminação, essas coisas. Um pouco de inveja sempre tinha, a gente percebia algumas coisas, porque o sorriso estava sempre no rosto, a simpatia, o carisma.

Mas dentro d’água eu tinha que fazer o meu melhor, o tempo todo estava muito focado em fazer o meu melhor. Foi isso que fez de mim o que sou, mas eu nunca percebi, nem aqui no Brasil, nem nos países onde pude competir. Via muitas pessoas falar: ‘aquele cara ali não gosta de negro’.

Mas eu não estava nem aí, era dessas pessoas que queria me aproximar mesmo, para mostrar que, por ventura, tivesse algum tipo de preconceito, racismo, contra cor de quem quer que seja, mostrar que o sangue de todos nós é vermelho.

Sempre fui a favor e sempre preguei sobre o humanismo, como ser humano e como acreditar em Deus. Em um Deus que criou a todos e que ama a todos igualmente.

Qual seria a receita perfeita para ter mais profissionais negros no mundo do surfe atualmente?

Não existe segredo para isso. A única coisa que precisa ser feita é o fomento. Acho que o Brasil é um país onde se investe muito pouco em esporte, e nós já somos uma potência, imagine se o Brasil investisse mais em esporte.

Com certeza teria mais negros se destacando no surfe, no basquete, no futebol, em tantas outras modalidades, sobretudo no surfe. É criar mais oportunidades em que permita o acesso das pessoas de modo geral a praticarem o esporte. Talento nunca vai faltar, o Brasil sempre foi um país de talentos.

Se essas pessoas tiverem oportunidades de poder surfar, com certeza vão se desenvolver e ter a oportunidade de representar o seu município, seu estado e seu país.

Na sua carreira, incontáveis baterias foram disputadas, desde o momento em que você decidiu que iria em busca de seu sonho. Qual foi a disputa mais memorável para você em tanto tempo de competição?

Com certeza foram inúmeras baterias disputadas, e na verdade não houve um momento em que eu decidi que ia ser campeão e que eu estabelecia alguma meta na minha carreira, porque eram tempos diferentes, eram tempos em que a nossa comunidade do surfe estava muito preocupada em estar e não em obter, em conquistar.

Nosso sonho era simplesmente realizado em estar presente, em poder surfar, em poder viver a maior aventura que era conhecer o mar e as suas ondas, viajar em busca das melhores ondas. Para nós bastava um bom PF (prato feito), uma boa cama e surfe no outro dia, que a gente já estava feliz demais.

Quando vieram as competições que me proporcionaram ter um patrocínio e ainda ganhar alguns campeonatos, a gente estava no céu, era o ápice. Então, falando da minha disputa mais memorável, não posso esquecer de 94, que foi o meu primeiro ano no circuito mundial, nas Ilhas Reunião, no pico ali de Saint Leu, onde venci o Kelly Slater e fui para a final contra o Sunny Garcia.

Acabei tendo que me contentar com o vice-campeonato simplesmente porque não conhecia o potencial da onda. Se eu conhecesse o potencial da onda, certamente teria vencido aquele campeonato. Foi algo que eu me arrependi muito de ter saído da onda antes dela terminar, que era a onda para virar a bateria e no final ele levantou a minha mão reconhecendo que eu teria vencido o campeonato.

Tiveram outras baterias muito marcantes na minha vida, mas nesse evento, as baterias que eu pude disputar sendo o meu primeiro ano no circuito mundial, acho que foi o que mais me marcou.

Jojó de Olivença e Pedro Müller nos bastidores do SuperSurf 2006.Ricardo Macario
Jojó de Olivença e Pedro Müller nos bastidores do SuperSurf 2006.

São mais de 40 anos pegando onda em diferentes picos e mares. Apesar do pico de casa sempre receber um carinho especial do surfista, olhando para todos os locais em que você já surfou, qual é a sua onda favorita e por quê?

São exatamente 44 anos de experiência. É difícil responder qual foi o melhor mar, a melhor onda, em qual local, porque são cenas que aconteceram inúmeras vezes de surfar a onda do sonho, a onda perfeita, local e horário perfeito. São cenas memoráveis, mas não dá para descrever que foi a melhor onda, que foi o melhor lugar, que foi o melhor momento, porque o surfe é uma busca constante.

A gente está sempre buscando a onda perfeita, o momento perfeito, uma aventura. Ela (a busca) é diária, é o tempo inteiro, então você surfa uma onda muito boa, surfa um swell alucinante e aquilo fica na mente por algum tempo e depois você já surfa outro swell alucinante que substitui o último e é uma renovação constante que acontece. Isso é na vida de todo surfista, essa busca constante pela onda perfeita, pelo local e pelo momento perfeito.

Molecada reunida no Projeto Ondas.Divulgação
Molecada reunida no Projeto Ondas.

Com uma carreira fenomenal e experiência para dar e vender, você fundou o Projeto Ondas para ajudar a comunidade. Como tem sido o resultado que tem causado na vida dessas crianças?

Acho que se eu fosse realmente vender toda essa minha experiência, eu estaria ganhando muito dinheiro, porque realmente é uma história que tenho. Uma história de superação mesmo, a minha vida eu acho que foi uma história de superação. Tudo isso que eu faço hoje para ajudar essas crianças em vulnerabilidade social, socioeconômica, é tudo inspirado na minha própria história de superação de vida.

A gente consegue oferecer tudo isso de forma gratuita, mas primeiramente como uma forma de agradecer a Deus pelo privilégio de surfar, pelo privilégio de ter sido exaltado, de ter tido uma carreira de sucesso. Agradeço muito a Deus, porque eu sempre fui uma pessoa de muita fé, sempre acreditei muito em Deus, sempre acreditei que Ele nos dá a oportunidade e eu abracei essa oportunidade, tive sucesso, uma carreira, uma trajetória bacana.

Hoje o Projeto Ondas atende crianças e adolescentes de 7 a 12 anos. É um trabalho de prevenção, mas sobretudo utilizando o surfe como ferramenta de apoio à educação e à inclusão social, contribuindo para essa transformação, para ampliar a visão de mundo e estimular sonhos dessas crianças que vivem em morro. Um contexto de vida muito limitado, com poucas referências e com poucas oportunidades.

O surfe vem como essa ferramenta de transformação, de resgate, da autoestima, de superação, de realmente ampliar a visão de mundo e trazer perspectiva de futuro para essas crianças das comunidades. Nós trabalhamos o surfe como ferramenta, na verdade, de inclusão, não trabalhamos o alto rendimento.

Nós não estamos preocupados em formar bons surfistas, e sim bons cidadãos, que consigam surfar as ondas boas da vida com excelência. Isso se dá por meio das escolhas. Escolhendo a onda certa, vai ter sucesso, vai vencer, vai ser o vencedor. Escolher as ondas erradas, vem o fracasso, vem a derrota, é uma metáfora que a gente sempre usa, com o mar e a vida aqui fora.

O resultado tem sido muito positivo, vários casos de sucesso, vários jovens que passaram pela ONG na perspectiva de alcançar resultados, curto, médio e longo prazo. E ao longo prazo a nossa expectativa é de ter melhores cidadãos para a sociedade e para o mundo. Isso tudo acontece por meio da tecnologia e da inspiração que o surfe oferece.

Jojó de Olivença e crianças em Akwa Ibom, Nigéria.Arquivo pessoal
Jojó de Olivença e crianças em Akwa Ibom, Nigéria.

Como você se sente, podendo passar sua experiência e ensinamentos aos jovens, abrindo assim um leque novo de caminhos para eles trilharem?

Me sinto privilegiado, porque eu poderia muito bem estar fazendo outra coisa, ter escolhido outras coisas para fazer, para ganhar dinheiro comigo, com a minha família, no entanto, tenho isso como uma missão de vida. A gente acaba abrindo mão de conforto, de privilégios para poder servir ao próximo e tentar salvar o mundo de alguns. Minha família me apoia muito e é isso.

A gente consegue, de certa forma, mudar a mentalidade e a forma de pensar e construir na mente, no coração das crianças, idosos e adolescentes ideias novas, de um mundo mais amplo, de um mundo de novas oportunidades, de novas opções, de novos caminhos, de forma que eles podem seguir errando, podem seguir surfando ondas erradas, mas não será por falta de opção.

Então, me sinto muito privilegiado e como uma missão de vida mesmo. Continuar fazendo o que nós fazemos e ajudar as pessoas a surfarem as melhores ondas da vida, com muita excelência.

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