Um dos grandes nomes do Longboard feminino no Brasil, Rayane Amaral começou a surfar aos 16 anos, já fez trabalhos na televisão como atriz e também é idealizadora do projeto Nossa Onda, que busca transmitir o amor pelo esporte e desenvolver o surfe. Ela passou por uma situação de constrangimento e intimidação dentro do mar no último dia 4 de junho.
Tudo começou num domingo, próximo ao meio-dia, quando estava saindo do mar com sua aluna, na praia da Macumba (RJ). Um surfista remou em uma onda e tentou dropar, mas não conseguiu e acabou caindo. Sua prancha foi em direção a ela, pois estava sem o leash, o que mais chamou a sua atenção naquele momento.
Ao questionar o rapaz sobre o fato de surfar sem a cordinha e correr o risco de machucar alguém, Rayane foi intimidada e o surfista a chamou para resolver a situação fora da água.
A reação da longboarder foi de pedir ajuda, mas logo após receber apoio de muitas pessoas, o surfista a ameaçou e deixou a atleta com medo de sofrer de fato alguma agressão ou retaliação nos dias seguintes ao ocorrido.
Rayane chegou a pensar que tinha feito algo errado e se sentiu culpada, mas após postar um story em seu Instagram, contando resumidamente o que aconteceu, recebeu mensagens de diversas surfistas pedindo para que publicasse um vídeo, com o intuito de alcançar mais pessoas e possibilitar os compartilhamentos. Após publicar esse vídeo, a atleta recebeu relatos de mulheres que passaram por situações parecidas e isso a preocupou ainda mais, pois não imaginava que o cenário do surfe estava dessa forma.
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Depois da repercussão do vídeo, Rayane está disposta a unir forças e usar sua voz para fazer algo pelo surfe, pela segurança e respeito da mulher no mar.
Batemos um papo exclusivo com a longboarder, que com sua simpatia e sem economizar nos detalhes, nos conta o que aconteceu, como se sentiu, o que acha que pode ser feito para melhorar esse cenário e deixa uma mensagem aos surfistas. Confira a seguir.
O que de fato aconteceu naquele momento? Conte para nós.
Eu estava finalizando uma instrução. Era um domingo, praia da Macumba (RJ), muita gente na água, marolinha, já quase meio-dia, ou seja, um crowd danado. E eu tava saindo com uma aluna do mar.
Dou aula com o meu marido e ele tava finalizando com outra aluna. Como eu e ele temos uma metodologia diferente, entramos com pé de pato, sem prancha. Porque achamos que assim conseguimos fazer a aula render mais e também auxiliar melhor os alunos, já que pode acontecer alguma coisa em relação à segurança. Então estávamos sem prancha, eu nadando, junto com a aluna.
Quando virei pra trás, vi a série vindo. A onda veio, um surfista remou, tentou dropar e não conseguiu. Sabe quando na tentativa do drop, a gente cai pra trás? No que ele caiu, a prancha veio na minha direção e eu afundei com a mão pra cima, segurando a prancha dele.
Algumas outras alunas estavam na água, filmando as meninas em aula. Elas até comentaram: “meu Deus do céu, a gente só torceu para que a prancha não tivesse pegado em você”. Então segurei a prancha dele, devolvi na hora e questionei o fato de ele estar sem strep.
Falei: “por que você está sem strep?”. Ele simplesmente pegou a prancha da minha mão e virou as costas. Insisti: “ei, cada a sua cordinha?”. Ele pegou a prancha, deitou e começou a remar e não olhou pra trás. Mais uma vez falei: “ou, da próxima vez você não surfa aqui sem cordinha, você pode machucar alguém, tá lotado, cheio de gente aprendendo”.
Cara, quando eu falei isso, ele já virou falando: “qual foi? se acha que você vai me tirar da água? Vamo lá pra fora que a gente resolve isso”. Respondi: “o quê? você tá me chamando pra porrada? Então calma aí que eu vou chamar gente pra resolver isso com você”.
Saí da água e fui no quiosque, onde tem gente que me viu crescer, vários amigos do meu pai e falei: “gente o cara tá me chamando pra porrada, tá me chamando pra resolver com ele lá fora o fato de ele estar sem strep”. Já desceram umas vinte pessoas e entraram três com prancha.
Quando a galera entrou, que falaram: “qual foi meu irmão? o que você quer resolver?” o surfista já nem respondeu nada, pegou uma onda e saiu. Quando chegou na areia já tinha mais pessoas o esperando. Nesse meio tempo, ele parou justamente do lado do meu marido e foi reclamar de mim, me chamou de marrenta e soltou um palavrão e quando meu marido olhou pra trás, só tinha eu e a minha aluna saindo. Na hora pensou: “deve tá falando da Rayane, aconteceu alguma coisa”. Ele (marido) já foi comprar o meu barulho, “qual foi, você tá falando da minha esposa?” e o surfista falou: “tá reclamando comigo que tô surfando sem a cordinha” e meu marido respondeu: “não, você tá errado. Como é que você tá surfando sem a cordinha no dia de hoje? Tem que respeitar, ela é atleta, surfista profissional, é local e se ela tá te dando a ideia, você tem que respeitar”.
O surfista nem tinha noção da gravidade do que tinha acontecido. Então saí e na hora saiu todo mundo e foi uma confusão danada. Quando ele tava indo embora, ainda meio que me ameaçou, dizendo: “as coisas não vão ficar assim” e que conhecia todo mundo do Terreirão, que é uma comunidade do Recreio (RJ).
Passei o dia inteiro do domingo chorando, me sentindo mal pela situação, desrespeitada e comecei a querer me culpar, achando que eu tinha feito alguma coisa de errado. Até conversar com pessoas que me deram força, para falar sobre isso, ajudar outras mulheres e ir até uma delegacia pra fazer um boletim de ocorrência.
Fui a delegacia, fiz o registro e confesso que fiquei totalmente decepcionada. Porque não tenho como conseguir informações daquele surfista que me ameaçou.
Me passaram o Instagram desse homem, tenho uma foto dele, que uma pessoa tirou enquanto estava na mesma praia. Tenho provas, tenho a aluna, uma seguidora do Instagram, que eu printei na hora que ela me mandou uma mensagem, dizendo que estava filmando a filha, presenciou e escutou tudo que aconteceu.
Quando cheguei na delegacia, o policial que me atendeu pareceu banalizar muito a situação. Qualquer pessoa que lê o B.O., fala: “nossa, que ridículo, é uma briguinha de praia”. Ninguém entende o quanto doeu pra mim, que os dois dias seguidos, tive que ir com o meu pai e meu marido surfar, agora chego na praia olhando pros lados, com medo de encontrar com ele e próxima etapa do brasileiro, meu pai vai comigo, porque psicologicamente to abalada.
É triste ver que fui forte o suficiente pra falar sobre isso, com o intuito de tentar ajudar todo mundo, ir fazer um B.O. e no final não adiantar. Porque a minha intenção com esse registro era de conseguir uma medida protetiva. Só que o policial disse que não existe essa medida sem ter algum tipo de vínculo com a pessoa envolvida. Falei: “gente, como não?” Não adiantou nada. Como vou ter alguma coisa dele? Então nem sei quando eles vão descobrir alguma coisa e a importância que vão dar pra isso.
Hoje vejo o porquê muitas coisas acontecem com várias mulheres, porque a própria justiça brasileira banaliza situações. Não sei quem ele é e a que ponto pode ou poderia chegar. E se esse o cara fica com ódio de mim e me encontra na rua? O que será que ele pode fazer? Não que vai chegar a esse ponto, mas com certeza já deve ter acontecido com muita mulher. Por isso que quero sim comprar a briga e usar a minha voz pra falar por muitas. Pois recebi uma grande quantidade de mensagem de meninas surfistas, que já passaram por muitas situações no mar e acredito que em outros esportes também.
Fiquei impressionada com a quantidade de relatos que recebi no dia que fiz o post. Talvez eu estava dentro da minha bolha, no sentindo de pensar que sou uma pessoa relativamente respeitada na praia onde surfo, porque cresci aqui, então mal ou bem, as pessoas já sabem quem eu sou. Por mais que eu passe por algumas situações complicadas, as pessoas me engolem, digamos assim. Mas e quem não é? E quem tá aprendendo e é iniciante?
Recebi tanta coisa que eu pensei: “não sabia que estava desse jeito e não pode estar desse jeito”.
Recebi um comentário de um homem, que disse que as mulheres chegaram depois e que a gente agora quer ocupar o espaço deles e estamos com esse discurso feminista. Olha que absurdo, pensei: “como é que pode? O que a gente tá enfrentando, né?” Bizarro.
Como você se sentiu na hora? O que você pensou? Qual foi a sua primeira reação no momento que aconteceu?
Já foi uma superação conseguir sair da água e pedir ajuda. Por eu ser o tipo de pessoa que não costumo fazer isso, engulo e vou chorar.
Cheguei no quiosque tremendo, chorando. Ao mesmo tempo que estava assustada, não conseguia acreditar no que tinha acontecido.
O fato desse surfista ter sido o único naquele momento com uma atitude ruim e várias pessoas estavam do meu lado, pra me acolher e ajudar, foi o que me fortaleceu e vem me ajudando até no meu processo de levantar novamente. Tento focar no pensamento de: “olha pro lado de que você foi acolhida, de que a maior parte da galera esteve e está contigo”. Porque se focar no lado de que existem pessoas ruins, você não vai pra frente.
Qual foi a tua reação na hora? Chegou a pedir ajuda pra alguém?
Não tinha como eu fazer nada, nem consegui pensar.
Quando ele falou pra mim: “vamo resolver lá fora”, olhei pro fundo, vi meu marido lá embaixo, sabia que ele não tinha como escutar e entender o que eu tinha pra falar. Pensei: “vou ter que sair da água e pedir ajuda lá fora”. Foi o que fiz, saí da água, correndo, fui pro quiosque, deixei minha aluna na areia, deixei prancha, larguei tudo, subi e falei: “gente, pelo amor de Deus, me ajuda, o cara tá me chamando pra porrada aqui fora”.
Só que na hora que ele disse isso, respondi: “calma aí então que eu vou chamar gente pra resolver isso com você”. Acho que ele não acreditou, porque voltou pra água e foi surfar. Em nenhum momento se preocupou com nada, tanto que voltou pro mar pra reclamar justamente do lado do meu marido.
Ele deve ter pensado: “deve ser mais uma menina boba que tá falando que vai chamar alguém”. Mas ele não tinha ideia, logo depois entraram na água três surfistas. Ele arregalou o olho, e o mais engraçado de tudo é que ele tava com a namorada.
Enquanto ele discutia com o meu marido, o que segurou ele foi a namorada, porque ela tava sendo gente boa e pedindo desculpa até então. Quando a gente saiu da água, ele saiu primeiro e ela ficou.
No momento em que ela saiu, não estava entendendo o que tava acontecendo direito, mas o puxou pra perto de mim, mandando ele me pedir desculpa. Falei pra ela: “o seu namorado tá me chamando pra porrada”. Ela arregalou o olho e teve uma expressão de surpresa na hora.
A galera foi se exaltando pra perto dele e a namorada foi ficando mais nervosa. Começou a ameaçar, dizendo que se alguém fizesse alguma coisa com ele, ia se ver com ela também, que a mãe dela era policial. Enfim, estavam juntos surfando, ela não viu e nem escutou o que tinha acontecido. Igualzinho o meu marido, só foi entender depois. Não sei nem se a mãe é policial ou não, ou se estava falando pra intimidar.
Qual foi a reação das outras pessoas no crowd?
Tinha muita gente conhecida. Muitas pessoas me mandaram mensagem depois.
A galera achou que era briga por onda, por qualquer coisa que não isso. Ninguém conseguiu entender muito o que tinha acontecido. Foram entender depois e após verem o meu post no Instagram.
Só as pessoas que chamei na hora do ocorrido, sabiam o que tinha acontecido. Mas quem estava no mar não tinha como saber. Porque no momento que ele falou para resolvermos lá fora, só tava eu, ele, a minha aluna, uma menina tendo aula e a mulher na areia filmando a filha, não tinha mais ninguém ali.
Quando ele chegou, que foi reclamar perto do meu marido, só tinha eu e a minha aluna, não tinha muita gente. Então quando a galera ouviu o burburinho, viu a confusão, pensou: “ah, brigaram por causa de onda, por alguma coisa”. Ninguém imaginou que o cara tava me chamando pra resolver alguma questão lá fora, pra porrada.
O pior de tudo foi que quando ele saiu do mar e viu todo mundo e a confusão armada, negou tudo, falando: “Eu não falei nada, não fiz nada” E eu só falava pra ele: “você é cara de pau, tá negando na minha frente dizendo que não falou nada?”. Só que em seguida Fabi, veio a minha aluna, veio todo mundo.
No dia seguinte, tinha essa outra menina que eu nem conhecia, que mandou mensagem e tava na solicitação de amizade. Li, até mandei um print pro meu marido e falei: “olha aqui ó, uma pessoa que nunca nem vi na vida, me mandou mensagem falando que ouviu e viu tudo”.
Depois chegou uma hora que até eu achei que tava ficando maluca, pensei: “gente não é possível, será que escutei coisas?”. Porque acho que a gente também faz isso. Quando passamos por uma situação difícil, começamos a querer nos culpar, inventar caraminholas na nossa cabeça pra transferimos a culpa pra nós mesmas. Sendo que não é assim, a culpa não foi minha. Independente de qualquer coisa, ele tava errado, surfando de uma maneira incorreta. Não se pode surfar sem strep, ainda mais em um lugar em que a onda é forte, onde tem muita gente aprendendo e num final de semana, você pode machucar alguém.
Aqui na Macumba (RJ) a gente tem um quebra coco muito forte. E tivemos um campeonato que estavam muitos surfistas profissionais. A galera saía da água, principalmente as meninas, e o comentário entre elas era o quebra coco, a dificuldade de sair. Inclusive elas saíram cheia de areia, tomavam vários caldos.
Imagina se tem uma criança, uma mulher ou um senhor de idade ali, em um final de semana de sol e de repente vem uma prancha e essa pessoa não vê. Pode machucar ou dependendo, matar. Então precisamos ter responsabilidade, não tem que surfar sem strep, a segurança é a minha, do outro surfista e do banhista.
Acredito que nós como locais, temos que prezar por isso. Surfista local não é o que surfa super bem, que tá ali faz tempo e surfa no lugar há muitos anos. O local é o que preza pelo ambiente, segurança, limpeza de praia, preservação e vegetação do lugar. Isso sim é localismo.
As pessoas batem no peito pra falar “eu sou local”, mas o que faz pela sua praia? Que conscientização preza? Você a limpa? Tenta conscientizar as pessoas? Acho que isso sim é você se importar com o seu lugar. E eu tentei fazer algo pela minha praia e pelas pessoas que estavam ali, mas acabei sendo bastante desrespeitada.
Já tinha passado por uma situação parecida antes?
Já. Passei na minha vida inteira de surfista, por duas situações muito constrangedoras, essa foi a terceira.
Uma foi no Canto do Recreio, onde surfo sempre também e um cara dropou a onda, me raberou e me empurrou. Só que a situação não foi levada tão a sério, porque ele tentou levar na brincadeira. Do tipo (imitou uma risada) “eu tava brincando”. Mas aquilo me constrangeu, fiquei mal, mas respirei fundo e passou.
Porém, uma das piores de todas pra mim, foi quando eu tava surfando aqui no Rio de Janeiro também, peguei uma onda no outside e um cara de pranchinha pegou mais no inside. Quando fui dar o primeiro passo na prancha, só senti travar. Ele entrou mais atrás de mim, pulou e puxou meu strep. Quando puxou, travei e fui de peito na prancha, caí muito feio. Na época a gente tava surfando em Guaratiba e sei que nunca mais voltei e nem surfei nesse lugar, tenho meio que uma aversão.
Rolou uma discussão naquele dia. Lá tem localismo, da galera quebrar carro até. Então eu e as meninas que estavam comigo, ficamos um pouco tensas. Embora eu não tivesse feito nada. Acredito que essa tenha sido também uma situação muito difícil que eu tenha passado na água.
Já presenciou outras situações como esta?
Nunca presenciei, não que me lembre. Mas já fiquei sabendo de situações.
Acho que falta um pouco da união feminina nessa hora, do grito feminino. Por exemplo, se alguma coisa acontecer com alguma mulher na água, todas devem gritar juntas, se unir, nem que seja no berro, dizendo: “não vai encostar nela”, “você não vai xingar ela”. Porque parece que numa hora dessas, as meninas se dissipam. Falta união.
Parece que a gente vai atraindo as coisas, não sei se porque tenho estudado mais sobre o assunto ou porque tenho ficado mais atenta depois do que aconteceu comigo. Hoje eu tava assistindo uma matéria que fala que às vezes a maior disputa que existe, não é só entre o homem e a mulher, mas sim entre mulheres. Isso precisa acabar, pra que esse espaço que lutamos tanto, realmente conseguimos conquistar.
Se acontecer um problema no mar com alguma mulher e tiver outras juntas, precisa ser dito: “calma ai, você não vai mexer com ela”. Não tinha antigamente um lema? “Mexeu com uma, mexeu com todas?”. Precisa ser verídico, um fato. Precisamos estar juntas nisso, comprar o barulho e fazer acontecer pela outra.
Este tipo de violência é inaceitável em qualquer momento e qualquer ocasião, mas o que você acha disso acontecer ainda mais no momento atual do esporte, com tantas mulheres praticando e algumas competindo?
Não são todos os homens que aceitam ter mulheres os superando. Acho sim que existem homens que aplaudem o sucesso feminino, mas não são todos.
Vou te dar um exemplo, aqui na praia da Macumba, hoje em dia, talvez o surfe feminino do longboard seja a referência. Já tivemos o masculino, porém nesses últimos tempos de competição e expressividade, já passou a fase dos homens. Pois nos dias atuais eles não competem mais. O surf feminino da Macumba atualmente, vem muito forte, com a Chloé, com a Jasmim, com a Evelin, comigo. Mas se a gente tá surfando, não existe valorização e não liberam onda, fazem questão de raberar. Tem uma parte que libera, falam assim: “a gente quer ver vocês surfando” e tem outra que fala: “vocês são profissionais, queremos entrar na onda”.
Existe uma divisão, a parte do público masculino que realmente nos aplaude de pé, que entende: “que maneiro, as mulheres estão surfando muito e estão superando muitas coisas” e existe o lado que sente mexer com o ego, que ainda não aceita e nem valoriza.
Imaginava passar por essa situação?
Nunca. Fiquei quatro anos sem surfar e competir, estava na TV. Voltando aos campeonatos, pensei duas vezes se é o que quero. Porque pra mim o surfe vai muito além da competição.
Quando estou na água, às vezes as pessoas me veem e pensam: “parece uma menina de 10 anos”, porque converso com todo mundo.
O surfe pra mim vai além, me sinto muito feliz no mar, tanto surfando, quanto dando aula. Então nunca ia imaginar, num lugar onde sou tão feliz, me sentir desrespeitada e desconfortável dessa maneira, e não querer voltar. Porque passei uns dois dias sem querer ir pra praia e surfar.
Foi difícil e tem sido. Porque eu acredito muito em Deus, que ele faz as coisas tudo da maneira certa. Uma prancha nova que estava pra vir, acabou de chegar, então isso foi me estimulando a surfar. As coisas foram acontecendo e fui querendo estar na água de novo.
Outra coisa, o fato acontece na minha casa, então não poderia imaginar. Mas estaria suscetível a acontecer alguma coisa do tipo surfando em outra praia. Porque quando vai surfar em outro lugar, você respeita e se pergunta: “quem são os locais?”. Mas nunca imaginei sofrer tamanho desrespeito no lugar onde nasci, fui criada e cresci.
Foi complicado, fiquei sem saber o que e como fazer. Fui agindo no instinto, sabe aquele instinto sobrevivência? Foi tipo isso, e esse instinto me fez pedir ajuda.
A galera e várias mulheres perguntaram: “por que você não falou então vamo lá?” “por que você não foi bater nele?” eu não sei responder e como é que faz isso, que se chama alguém pra porrada. Mas fui atrás de ajuda e me senti confortável assim.
O que precisa ser feito pra mudar ou melhorar esse cenário?
Mudar é um caminho longo, mas acho que podemos começar a pensar nisso. Em se unir, criar campanhas e realmente falar mais sobre mais.
Lembro que um tempo atrás, começaram algumas campanhas de conscientização, mas depois sumiram, ficaram esquecidas. Não pode sumir, a gente tem que continuar falando a respeito.
Também é importante integrar modalidades. Todas estão no mar, o long, o Stand Up, o bodyboard, a pranchinha. Precisamos unir forças, porque se a gente estiver no mar, não vai estar só a longboarder, vai estar a bodyboarder também, a pranchinha e uma pode ajudar a outra, caso necessário. Então a campanha de conscientização, deve acontecer de forma integrada em todas as modalidades.
Confesso que nunca estudei sobre isso e agora comecei a querer saber para entender o que eu posso falar, até que ponto posso exigir o meu direito, quais são e até onde vai os direitos do homem ou da outra menina também, pois podemos nos desentender uma com a outra.
Tudo isso a gente precisa estar a par. Então essas campanhas precisam acontecer. E acho que todo o início de mudança, começa assim, a gente conscientizando.
Que tipo de sentimento o surfe deveria despertar nas pessoas, em tua opinião?
Tive duas fases de surfe na minha vida. Comecei a surfar com 15 anos, pra alguns nova e pra outros, velha. A minha família nunca tinha tido contato com o surfe até então, meu pai não era surfista e nem ninguém da minha família era e eu morava 50 minutos da praia. Foi um acaso do universo começarmos a surfar. Mas foi um amor que surgiu pra mim e pra eles também, que fez a gente se dedicar muito.
Quando resolvi focar no surfe, comecei a competir. E a minha vida durante um bom tempo foi dividida entre o surfe e a arte, a televisão.
Quando a minha vida na TV deslanchou, deixei o surfe e veio a pandemia. Esse período acho que fez a gente ressignificar muitas coisas. E quando voltei pro surfe e deixei de lado os trabalhos na TV, passei a ver esse esporte com a essência que ele é.
Quando comecei a surfar, o meu primeiro patrocinador de prancha, um velhinho de 70 anos, disse que eu só ia começar a evoluir no surfe quando pensasse no esporte com amor e não só como uma ação. Hoje entendo isso, porque ele dizia que eu tinha que sair do mecânico, do querer, e tinha que começar a vir para o meu coração, sinto isso agora.
Às vezes quero tá no mar, só por estar lá. Quero surfar, só por surfar. Até quando o mar tá o horrível, eu quero estar na água.
O surfe me traz muita alegria e é essa a verdadeira essência. Compartilhar bons momentos, estar, apreciar e cuidar da natureza e ter uma qualidade de vida.
Lembro que antigamente a galera falava muito: “tá estressado, vai surfar”. O surfe vai te tirar o estresse, te fazer desligar da sua vida por alguns instantes. Então não leva o seu estresse pra lá, porque de repente é pra te curar. Esse é o meu pensamento hoje.
Antes eu tinha o surfe muito como treino. Não falava que ia surfar e sim treinar, tinha um peso de campeonato. Nos dias atuais não, quero surfar, ir pro mar, estar ali, encontrar meus amigos na água e me divertir. Consequentemente as coisas vão acontecer e é isso que tento passar até pros meus alunos.
Acho que grandes surfistas conseguem viver do surfe e passar a essência para as pessoas, porque vivem dessa forma. Os havaianos vivem isso, o aloha vibe. Eles vivem exatamente assim, amam o surfe. Porque atualmente virou um mercado, uma empresa, então as pessoas estão perdendo um pouco o significado, o amor pelo esporte e pelo mar. E surfe é muito mais do que isso.
Qual o melhor caminho para as pessoas conviverem em harmonia no outside?
Acho que serem um pouco mais leves e tentarem não competir tanto. Porque se você não ficar competindo e viver de uma forma mais leve, não vai querer disputar e nem querer se estressar.
Penso que uma das maiores brigas hoje em dia no outside é por conta de onda. Vejo muito na água a falta de respeito e de consideração. Mas tem onda e todo mundo vai pegar. Você não precisa pegar todas que vem. Então vamos respeitar quem tá do lado, que também quer surfar. Não precisa raberar ninguém, não é legal nem pra você, nem pra pessoa.
Tendo um mínimo respeito entre todos que estão na água, como por exemplo, pensar: “não vou pegar todas”, “vou deixar a onda pro colega também”, “não vou entrar na onda do colega, porque senão, não vai ser legal nem pra mim e nem pra ele”, pode ser um começo para criar uma relação mais harmônica dentro do mar.
A instrução é importante começar na base. Porque um outro problema que também acontece muito é alguém largar a prancha e uma pessoa ser atingida, por exemplo. Mas tem situações que podem ser evitadas. Sendo assim, pode-se considerar que a pessoa foi mal instruída e por isso age de tal maneira, ao invés de saber prevenir um acidente. Existem formas de evitar certas situações para não machucar ninguém.
Estando bem instruído, começa ter uma convivência melhor no meio do crowd, mais respeito, um pouco de jogo de cintura durante o surfe e pode criar um ambiente mais agradável no mar.
Qual mensagem você deixaria para os surfistas em geral, homens e mulheres?
Que vocês usem o surfe pro bem, pra felicidade, pra criar momentos que você recorda com alegria. Porque é muito ruim pensar nesse esporte como uma lembrança ruim.
Aprenda que o outside é um lugar pra relaxar, pra poder se livrar dos seus problemas e despejar até sentimentos ruins. Mas despeja no mar pra ele levar, não despeja nas pessoas.
A essência é de muita positividade. Não é à toa que a gente fala que surfista é good vibe. Nós surfistas precisamos achar e reencontrar isso dentro de nós. Pois talvez perdemos um pouco.
Desejo que nós, homens e mulheres, reencontremos o quão good vibe somos.