Depois de adiar a viagem ao México por quase sete anos, ora por responsabilidades, ora por ter outra trip, finalmente embarquei pra fugir do Carnaval. Cheguei por lá e meu destino era único: uma praia com nome de Zicatela (serro espinhoso), que fica em Puerto Escondido. Fui equipado com guns, colete e curso de apneia na bagagem, numa época com clima agradável e pequenas ondulações, e passei dias tentando conhecer o lugar, famoso pelo poder de suas ondas, mas sem previsão de swell.
A perspectiva de pegar ondas de 6 pés pra cima antes da voltar pro Brasil não era animadora. Então tive que escolher: perder a passagem e ficar sem data de volta, ou voltar pro Brasil com a mala de tubos vazia? E você, o que faria? Responsabilidades inerentes passavam na minha cabeça, mas o outro lado pensava “só se vive uma vez”, porém também tudo tem um preço. Que confusão mental! Escolhi ficar e, literalmente, me endividar. Só tinha uma missão: evoluir naquela onda. A escolha foi acertada e contei com o apoio do fotógrafo @VandieliMaias que mora há 15 anos no local.
Desde o início paguei muitos “impostos” em Puerto Escondido: pranchas quebradas, wipeouts e pequenos machucados. E estava sem seguro, o que recomendo fazer. Cheguei a pensar em virar bodyboarder, pois vi que teria mais sucesso em atacar a onda assim (risos). Consegui comprar uma prancha com o Miguelito, local que tem uma pequena loja e que gosta muito dos brasileiros. Pra evoluir eu tinha que estar como equipamento certo.
Primeira lição de Puerto: assumir que você não sabe de nada e escutar quem manda bem naquela onda. Assim fui evoluindo, estudando modelos de pranchas específicos e crescendo à medida que ondulações de maior intensidade entravam fechando muito, pois o banco de areia ainda estava se acertando.
O localismo em Puerto é forte em todos os sentidos. Se você é fotografo e fechou a viagem com seus amigos, ok. Agora nem pense em vender fotos ou vai arrumar problemas.
Lembro-me do primeiro grande swell. Ele chegou em março com ondas de 8 a 12 pés e surfei sozinho por uma hora. Foi emocionante e tenso. Pegava uma onda e dava a volta pra entrar de novo contando apenas com os guarda-vidas, pois não havia ninguém nem pra fazer as imagens.
Foram meses de muito aprendizado pra um “Zicateleiro” de carteirinha. Digo isso, por que só depois de dois meses fiz minha primeira trip pro Sul em busca de ondas perfeitas, pois sempre pensava: “e se Zica quebrar daquele jeito?”.
Muitas pessoas passaram pela trip e voltaram, mas agora quero entrar no dia fatídico. Esse dia foi um capítulo à parte. Eu sempre acordava às 5h e era um dos primeiros a cair no mar. Ao tentar entrar na calmaria a série apareceu e a corrente me arrastou para o outro canto da praia. As ondas amanheceram com seis pés e com boas condições, mas rapidamente cresceram em tamanho.
Depois de ouvir o big rider mexicano Coco Nogales comentar que alguém tinha quebrado a perna, o maral começou a soprar e não tinha percebido o quanto o mar tinha subido, já passando dos 10 pés nas séries. Dropei a saideira e me perguntaram na areia se eu estava bem, pois a onda foi uma fechadeira e fiquei um tempo debaixo d’água. Foi aí que as informações de que um local tinha quebrado a perna e de que um bodyboarder estava desaparecido se confirmaram.
Depois de algumas horas o corpo do surfista Rafael Picolli foi encontrado sem vida na baía do Marinero. Enquanto a equipe de guarda-vidas estava atendendo o surfista local com fratura grave, Rafael estava pegando sua última onda. Conheci ele uma semana antes e era uma pessoa muito tranquila no outside.
Tínhamos assunto em comum, pois nasci em Floripa e até hoje é difícil de absorver o que aconteceu. Sempre coloquei Zicatela no nível de Pipe e de Teahupoo, pois apesar de não ter fundo de pedra ou coral as ondulações chegam em uma plataforma continental sem filtro, direto na bancada. A melhor definição da onda foi de um havaiano que afirmou que Zicatela é igual a Pipe e Backdoor com o volume de Sunset.
Depois de quase acidentes no paraquedismo, um acidente de moto, cinco pranchas quebradas, uma colisão com a prancha que me tirou uma semana fora do mar e deixou em dúvida se conseguiria voltar, entre outros, consegui voltar inteiro ao Brasil inteiro e por isso eu só agradeço.
Já surfei Punta Lobos no Chile, morei em Pico alto no Peru, surfei em Waimea entre outros picos, mas pra mim o lugar mais perigoso que já conheci é Puerto. Esse lugar tem muita energia e a onda parece uma espécie de jogo mental. Lá você pode pegar a onda da sua vida ou pagar com ela. Se for pra lá faça um seguro.
Agradecimentos ao fotógrafo e surfista Vandieli Maias, ao miguel Zapitto, ao fotógrafo Miguel Diaz West Side, Buho Jarquin, Toby e Mnn Project e o editor Ariel Ecker que colaboraram com a matéria, além de inúmeras pessoas que conheci nesses 100 dias.
Esta matéria é dedicada ao surfista Rafael Picolli.
O fotógrafo e freesurfer David Nagamini tem apoio da Beachlife Garopaba, Estudio de Yoga Sadhana yoga e Clsurfboards.
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