A etapa do Championship Tour pegava fogo em Peniche, Portugal, quando meu telefone tocou. Não costumo atender a ligações desconhecidas, devido a tanta importunação do telemarketing, mas notei que era um número do exterior e fiquei curioso. Do outro lado da linha, o peruano Karin Sierralta, com quem não tinha contato há muitos e muitos anos. “Ader, quer ir para El Salvador daqui a algumas semanas?!”, perguntou Karin, presidente da Associação Latino-Americana (ALAS) e da Pan-American Surfing Association (PASA). O peruano ocupa também um dos cargos de vice-presidente da International Surfing Association (ISA), entidade que levou o surfe às Olimpíadas através de um árduo trabalho comandado pelo argentino Fernando Aguerre.
Já estava surpreso com a ligação, e mais ainda com o convite. “Vai ter o que lá?”, indaguei. “Vamos fazer a última etapa do ALAS Latin Tour e gostaria que você fosse. Pode me dar uma resposta o quanto antes?”, solicitou Karin.
Com minha esposa grávida do meu primeiro filho e muitos ajustes para fazer em casa antes do seu nascimento – previsto para janeiro -, confesso que titubeei. Quatro fatores me motivaram a aceitar o convite. O primeiro foi a possibilidade de conhecer um novo país. O segundo foi a chance de conhecer os novos talentos do surfe latino-americano, pois estar antenado é sempre importante para um jornalista. O terceiro foi a oportunidade de surfar nas tão faladas direitas salvadorenhas, sempre elogiadas por alguns amigos, como o ex-Top da elite mundial Christiano Spirro. Por fim, estava sem surfar desde o início de setembro, quando um crime ambiental atingiu em cheio o litoral nordestino, com uma quantidade impressionante de óleo chegando às praias de muitos lugares da região, incluindo Salvador (BA), onde moro.
Convite aceito, mas com aquela insegurança por vários dias, mesmo depois da passagem emitida. Via minha esposa com a barriga grande e ficava sentido por estar viajando neste momento, deixando-a sozinha com nosso filho que está por nascer.
Mas, com ela se sentindo muito bem e me dando força para viajar, tirei o peso da consciência e passei a me organizar para a viagem.
A primeira vez que ouvi falar das ondas de El Salvador foi há muitos anos, em um dos muitos textos aventureiros do grande jornalista e mochileiro Adrian Kojin. Ele exaltava as ondas salvadorenhas e até fiquei curioso, mas jamais imaginava que teria a oportunidade de conhecer o lugar. Primeiramente porque na época eu era muito novo e não havia feito nenhuma viagem internacional. Segundo, porque El Salvador era um país mais famoso por suas guerras civis e pobreza. Naquela época, parecia coisa de louco ir para lá (risos).
Muitos anos se passaram desde que li esse texto – talvez até umas duas décadas -, e muita coisa mudou, tanto na minha vida quanto na história de El Salvador. Atualmente, o País é governado por Nayib Bukele, de apenas 38 anos e formado em Publicidade. Quando falo “apenas” não é porque é um garoto, obviamente, e sim porque não é muito comum ver um presidente de uma nação com essa idade.
Ao notar que a população salvadorenha estava insatisfeita tanto com a direita quanto com a esquerda, Nayib lançou sua candidatura com ideias diferentes das duas extremidades políticas, que se alternaram no poder por 30 anos. Com apenas seis meses no governo, já deixa claro que sua intenção é inovar.
Sua gestão marca o lançamento da campanha de El Salvador como uma surf city. Vendo que cada vez mais surfistas desembarcavam em seu país em busca dos diversos pointbreaks – especialmente de direitas -, o governo passou a explorar o que há de melhor na costa de apenas 300km.
Os norte-americanos são grande maioria entre os turistas, atingindo um índice de 50%, seguidos pelos brasileiros, que também têm ido em peso.
Investimento de US$ 200 milhões no projeto El Salvador Surf City
Durante a etapa do ALAS Latin Tour, o presidente recebeu uma comitiva formada por atletas, dirigentes e comissão técnica do evento. Ao término da cerimônia, Nayib recebeu alguns jornalistas convidados em uma sala do Palácio, e tive a oportunidade de estar presente junto com meu amigo de longa data, o uruguaio Pablo Zanocchi – editor do site Dukesurf e ex-assessor de imprensa da ALAS e da ISA.
Nessa conversa, o presidente explicou que o projeto El Salvador Surf City terá um investimento de US$ 200 milhões em planos de infraestrutura nos dois primeiros anos do governo.
Os gastos serão com fiação elétrica subterrânea, melhora do fluxo de energia elétrica, gerenciamento de resíduos, incluindo purificação de água antes de retornar às bacias, limpeza de praias, reforma do píer de La Libertad e todas as áreas onde os surfistas visitam, entre outras coisas.
“El Salvador não explorou seu potencial turístico, nunca o fez na história do país. Outros potenciais foram explorados, mas não o turístico”, disse Nayib. “Há um ano, você ouvia falar de El Salvador e pensava em duas coisas: violência, migração e uma guerra civil que aconteceu 30 anos atrás. Queremos que as pessoas pensem em El Salvador e pensem em surfar. Somente essa mudança de imagem abre a possibilidade para milhares de outras coisas, como investimento privado estrangeiro, pessoas que não surfam, mas querem se aposentar em El Salvador por causa do bom clima, de uma boa indústria turística e de um lugar tranquilo e bonito”.
Turismo sustentável
Nayib mostrou também grande preocupação com o turismo sustentável. “Sabemos o que o surfista está procurando, e não é o hotel sete estrelas de 20 andares na praia, então, para nós, isso é uma bênção, porque para ter um será muito tempo e ter um sobre o outro é gastar muito mais. Queremos apostar em um turismo mais sustentável com o meio ambiente. Queremos tornar nossas praias mais paradisíacas do que são agora”.
“Para um país como o nosso, com o potencial de surfistas de todo o mundo que viajam para El Salvador, não me importo se você trouxer uma mochila e alguns dólares, que gerem um tipo de turismo que é o turismo do futuro. Ou seja, para competir com Miami já existe Miami e para vencermos em Miami, 100 anos se passarão e isso não acontecerá. Mas ser um destino bonito e diferente do que os surfistas gostam, é mais fácil, mais ecológico e diferente, o que lhe dá mais chances de sucesso”, comentou o presidente.
O presidente também acredita que o projeto pode ajudar a diminuir o índice de pobreza em seu país. “Um jovem que estava cursando o ensino médio agora em La Libertad, Sonzonate ou La Paz, pode dizer subitamente que estudará hotelaria e turismo porque aqui há clientela em vez de viajar para os Estados Unidos, atravessando três fronteiras e um deserto, tentar chegar a um muro e se conseguir passar por um muro, o que será muito difícil, chegará a um país onde não conhece o idioma, não tem documentos, e eles vão te perseguir… Então, se crescer como esperamos que cresça, será muito melhor estudar aqui e trabalhar aqui, sem se separar da sua família e das raízes do seu país, e de repente da sua praia, porque você pode ser um surfista… Eu acho que isso terá um impacto, não sei o quanto macroeconômico, mas terá um impacto social e de pobreza diretamente”.
Brasil pode ter voo direto para El Salvador
Também conversei com ministra de turismo, Morena Valdez. Extremamente simpática, Morena é praticante do esporte e adora as direitas de El Sunzal. “Estamos apostando no surfe como um programa turístico para que El Salvador seja conhecido a nível mundial. Não queremos que El Salvador seja conhecido pelas notícias ruins e nem confundam com outros lugares como Salvador da Bahia. Temos as melhores ondas do mundo para surfar, temos água quente, outros destinos turísticos para visitar e uma infinidade de opções para se fazer em pouco tempo no país”, diz a ministra.
Os 300km da costa salvadorenha contam com cerca de 50 picos. “Só aqui em Libertad, temos 20 picos. Temos uma grande quantidade de pointbreaks, que são os que a maioria dos surfistas buscam, e também muitos beach breaks. Em um dia, é possível percorrer 20 picos”, conta Morena.
Assim como o presidente, a ministra reforçou a importância do turismo sustentável. “Estamos trabalhando para que o desenvolvimento turístico aconteça de maneira organizada e também nos preocupamos com a proteção ao meio ambiente, pois isso é muito importante. Todos os ministérios estão trabalhando em conjunto para que, quando os turistas venham, estejamos preparados tanto com a infraestrutura pública, quanto com a privada”, explica.
A ministra deu ainda uma notícia animadora para os brasileiros que pretendem viajar para El Salvador. “Estamos fazendo uma parceria com uma companhia aérea brasileira para contar com voos diretos e mais baratos, e também estamos trabalhando com o governo para promover alguns intercâmbios”, revela Morena, que preferiu não revelar o nome da empresa por ainda estar em negociação.
Talentos locais
O grande talento do País é Bryan Peréz, um regular muito alto, com surfe fluido, vistoso. Peréz ganhou bastante notoriedade este ano, depois que conquistou a medalha de bronze nos Jogos Pan-Americanos de Lima, Peru.
Durante a etapa do ALAS Latin Tour, o salvadorenho surfou muito bem e chegou à finalíssima, travando uma batalha eletrizante com o sempre raçudo costa-riquenho Noe Mar McGonagle.
Bryan acabou perdendo a final, mas foi o mais ovacionado na festa do evento. Ao chegar, muitos queriam tirar uma foto com ele ou puxar conversa.
Já ouvia falar muito bem de Bryan Peréz e realmente é um ótimo garoto, sempre sorridente e muito educado, além de um grande talento. Se quiser ser um atleta de peso no cenário internacional e sonhar em chegar à elite, Bryan vai ter que evitar a tentadora comodidade de surfar apenas nos pointbreaks de ondas perfeitas de El Salvador e não deixar que a badalação de ser “o cara” de La Libertad tome conta dele, ainda mais num lugar tão turístico, com muitas mulheres lindas de diversos países curtindo as praias e as noites salvadorenhas. Se continuar com a boa cabeça que tem e tiver ambição competitiva, se dedicando fisicamente e treinando duro também nas ondas pequenas, o garoto pode ir longe (e espero que vá).
Quem também me chamou a atenção foi Porfirio Alexis Miranda, local de La Bocana. Dono de um surfe veloz e arrojado, Porfirio arrebentou na etapa e só parou nas quartas de final por uma pequena diferença. Diferentemente de Bryan, o local de La Bocana não conta com suporte do governo salvadorenho. Diretor do Instituto Nacional de Esportes de El Salvador, Yamil Bukele alegou que Porfirio precisa melhorar sua disciplina. Não conheço o histórico de Porfirio, mas sempre observei um grande desperdício de talentos em lugares tropicais com o slogan de “surf city”. A tentação é enorme e esses atletas são sempre bajulados por turistas, principalmente. Tem que ter muito foco. Não sei quais os problemas disciplinares que o talentoso Porfirio tem, mas espero que ele consiga entrar no eixo pretendido pelo governo e brilhar pelo mundo, assim como Bryan Peréz.
Temporada ideal para maiores ondulações
O único ponto negativo da viagem foi a falta de ondulações maiores, mas não dá para reclamar. Apesar de ter ido na baixa temporada do surfe (a melhor época é de maio a outubro), as ondas estiveram divertidas. Também fiquei muito bem hospedado no Boca Olas, um resort confortável e com uma linda vista para La Bocana. Além de cobrir o evento, surfei nos picos de Punta Rocas, La Bocana e El Sunzal, em La Libertad, e em Punta Mango, já no lado oeste.
Sunzal tem uma onda mais cheia, com longas paredes, e fica mais para o outside da praia de El Tunco. É um paraíso para os longboarders, mas também dá pra curtir muito de “pranchinha”, especialmente na maré seca e em dias com maiores ondulações. Uma dica: na maré cheia, o sofrimento é grande para caminhar pelas pedras da praia. Se puder levar algum calçado, não pense duas vezes.
Também situado em El Tunco, o lugar mais turístico de La Libertad, o pico de La Bocana oferece direitas e esquerdas sobre uma bancada de pedras redondas. É possível entrar e sair pela faixa de areia mais ao lado, principalmente na maré seca, mas, tendo cuidado e paciência, também é tranquilo entrar e sair pelas pedras.
A situação é bem diferente em Punta Rocas, a melhor onda da região e que já foi palco de etapas do Qualifying Series da WSL. Logo no começo da viagem, tive a oportunidade de dividir algumas ondas nesse pico com o amigo e jornalista Renato Alexandrino (editor assistente do O Globo), que curtia férias no paraíso. Em Punta Rocas, o acesso e a saída são bem mais complicados. As pedras são mais afiadas e escorregadias, com muitos buracos entre elas. É muito comum ver surfistas perdendo quilhas ou tendo suas pranchas quebradas nas pedras de Punta Rocas. Na saída, alguns garotos da pobre comunidade local se aproximam oferecendo ajuda para carregar sua prancha – na esperança de conseguir um ou dois dólares.
No penúltimo dia da viagem, eu, o jornalista Pablo Zanocchi e o filmmaker argentino Alejandro “Colorado” fomos convidados para conhecer o lado oeste, mais precisamente Punta Mango e Las Flores. Logo cedo, a simpaticíssima Lya Salazar, que trabalha no ministério de turismo salvadorenho, foi ao resort Boca Olas nos receber.
A viagem de El Tunco até os picos da costa oriental leva cerca de três horas, devido ao tráfego na estreita estrada e às curvas sinuosas, além de um trecho de barro e com vacas passando pelo caminho. Tivemos pouco tempo nesse lado também paradisíaco, mas nos divertimos muito. Surfamos sozinhos em Punta Mango, nos revezando nas direitas de pouco mais de meio metro, mas longas e bem manobráveis. Uma pena estar pequeno.
Tivemos apenas uma hora para surfar, pois ainda teríamos que almoçar e partir para Las Flores, um pico mais próximo. No Los Mangos Hotel, fomos muito bem recebidos pelo proprietário Ricardo Rivas. Enquanto devorávamos um delicioso peixe frito, Ricardo contava histórias do lugar e mostrava imagens impressionantes de Punta Mango. Ficava imaginando aquela direita bombando de verdade…
A conversa foi muito boa e acabamos chegando tarde ao Las Flores Surf Resort, onde também fomos muito bem tratados pela carismática gerente Cony Rivas.
Se em Punta Mango as direitas já estavam pequenas, em Las Flores poucas séries quebravam, mas muitos surfistas iniciantes faziam a festa no belíssimo beach break. Enquanto isso, admirávamos o visual incrível do alto do resort.
Hora de encarar mais três horas no retorno a El Tunco. Ali, entendi bem porque muitos amigos diziam que o ideal era dormir em Las Flores ou Punta Mango, em vez de retornar no mesmo dia. É extremamente cansativo ir e voltar no mesmo dia, ainda mais com o desgaste do forte calor e das longas remadas a cada direita surfada (risos).
Mas, não podíamos desperdiçar daquela oportunidade, já que teríamos de ir embora no dia seguinte. Apesar do grande cansaço, foi mais um dia incrível no paraíso.
Infelizmente não tive a oportunidade de surfar também em picos como El Zonte, Mizata e Km59, mas isso ficará para uma próxima oportunidade, já que El Salvador definitivamente entrou na lista de países que pretendo visitar novamente.