O mês era junho. O São João se aproximava e com ele o último evento astronômico do semestre, relevante para um surfista de pororoca: um eclipse lunar. Eu, o Mr. Pororoca Marcelo Bibita e nosso amigo Sérgio Kenui estávamos prontos para surfar a pororoca desde junho, mas, por motivos óbvios e implicações práticas e éticas, precisamos esperar até o início da flexibilização do isolamento social imposto ao município de Arari (MA), o local mais próximo do Ceará, onde o fenômeno ocorre. Para a nossa alegria e felicidade, a abertura do comércio e de atividades ocorreu bem no dia do eclipse. Já havíamos perdido as superluas de março e abril e não dava para perder aquela que poderia ser a última chance de surfar uma pororoca perfeita no ano de 2020.
Entramos em contato com as secretarias de turismo, saúde e vigilância sanitária do município de Arari e assumimos o compromisso de fazer os testes pra Covid-19 na véspera da viagem, além de tomarmos todos os cuidados protocolados para assim criar uma bolha de segurança anti-Covid-19. Dali em diante nos tornamos cobaias de nosso próprio experimento, que buscava provar que é possível fazer uma surf trip com total responsabilidade e segurança. Agora sim, o jejum do surfe tinha dia e hora para ser quebrado, porque o fenômeno da pororoca é assim: as ondas têm local e hora exata para acontecer e se você não estiver lá e perder a onda, só no dia seguinte. Nesse e em vários outros aspectos, a pororoca é implacável!
Pegamos a estrada de Fortaleza até Teresina (PI) e de lá seguindo para o Maranhão. Nesse trecho, a maior parte da estrada estava em bom estado de conservação e conseguimos percorrer os mais de 900km do percurso em pouco mais de 14h com três paradas para alimentação e abastecimento do veículo. Sempre atentando para o uso de máscaras e higienização das mãos quando saíamos e retornávamos ao carro.
Chegando em Arari, apresentamos os resultados de nossos exames a representantes da vigilância sanitária, que prontamente nos desejaram as boas vindas à capital nordestina da pororoca. Quem também fez questão de nos receber e demonstrar o apoio do município ao nosso projeto foi o secretário de meio ambiente, Jocei Ribeiro. E após quase 30 dias de planejamento conjunto estávamos oficialmente autorizados a surfar a pororoca do Rio Mearim, após mais de três meses de proibição.
E não precisa dizer que a expectativa era muito grande! Sabíamos que a onda estava vindo forte. Nosso contato local, Ruan Pororoca, durante os quase dois meses que antecederam a realização do projeto, todos os dias nos passava o comportamento e as condições da onda. Ele já havia contraído a Covid-19 no mês de maio e já estava curado, daí não comprometia nossa operação, já que voltar aos nossos lares sãos e salvos e sem contato com o famigerado vírus também fazia parte dessa missão. De nada adiantaria todo aquele esforço se qualquer um de nós se contaminasse. Até porque, por estarmos em uma bolha, se qualquer um se expusesse ao vírus, todos estaríamos comprometidos, afinal de contas, estávamos dentro do mesmo carro, que, além de nós três, ainda contava com a presença da repórter cinematográfica Rayana Lopes e da repórter fotográfica Jessica Mota, ambas também testadas negativo para Covid-19.
Outro personagem importante nesse projeto foi Gilvandro Junior, pioneiro do surfe na pororoca, que conseguiu o jet-ski e a banana boat usados na operação, e claro, o surfista local Ruan Pororoca, que nos ajudou desde o momento em que decidimos surfar a Pororoca do eclipse lunar de 2020.
1º Dia – O Eclipse Lunar
O primeiro dia de operação é sempre o mais tenso. A maré era boa, devido à Lua Nova, tinha uma ótima variação. O alinhamento dos astros que provocara eclipse também era favorável à ocorrência do fenômeno. Mas nada, absolutamente nada, pode garantir que a onda irá realmente acontecer! Como de costume, chegamos antes do nascer do sol. Devido toda operação ter relação direta com os movimentos das marés, o primeiro dia é sempre o que inicia mais cedo. Além disso, era preciso encher a banana boat e depois colocá-la na água junto com o jet-ski e a lancha de apoio à imprensa, antes de iniciar a “caçada”.
Durante muito tempo eu relutei em usar esse termo. Mas, após alguns anos, desconheço outra maneira de definir uma operação de surfe na pororoca que não seja uma caçada real. Primeiro você precisa ter um caçador experiente comandando as ações e nós tínhamos um dos melhores, Marcelo Bibita. Um bom piloto para o jet-ski também é imprescindível (não são raras as histórias de expedições que terminaram com perda total de equipamentos). Definidas as peças chave, segue-se rio abaixo em uma banana boat rebocada pelo jet-ski, sempre seguindo as orientações do comandante da operação, até se deparar de frente com o fenômeno. Quanto antes você entrar no rio, antes você irá se encontrar com a pororoca.
Quando se avista o fenômeno acontece uma descarga de adrenalina (ao menos comigo é assim). Daí você tem de escolher o local exato para abordar a onda. Aos poucos cada um vai tomando sua decisão e saltando da banana para pegar a onda. Muitas vezes os surfistas não conseguem entrar na pororoca por errar o locar do “ataque”. O “bote” é o momento mais importante de toda a operação. Em nossa primeira abordagem, todos conseguimos surfar a onda, uma verdadeira explosão de alegria, sobretudo para Sérgio, nosso amigo que pela primeira vez via e vivenciava o fenômeno. Apesar do tempo despendido nos preparativos, ainda conseguimos surfar um bom trecho no fim da seção conhecida como o Paredão da Morte ou Corredor da Morte, como Marcelo Bibita prefere chamar. Em se tratando de pororoca, não medimos apenas o tamanho da onda. O tempo também é uma variável por demais importante e nesse primeiro ataque todos já contabilizamos alguns minutos de onda. Estávamos em êxtase, mas a operação ainda não havia terminado. Era preciso manter o foco, pois a pororoca seguia à nossa frente e se quiséssemos surfar novamente precisaríamos ultrapassá-la. Voltamos para a banana boat e começamos uma nova caçada. Nesse hora, um bom piloto faz toda diferença. E nós estávamos com o melhor, Bruninho. Acostumado a fazer a alegria de centenas de pessoas nas praias de Salinas, no Pará, nosso piloto procedeu um resgate muito rápido e em poucos minutos já estávamos mais uma vez diante do fenômeno e prontos para surfar a segunda seção da mesma onda para mais uma abordagem precisa e com 100% de aproveitamento.
Após 4h de “caçada”, estávamos comemorando o espetacular fenômeno que havíamos acabado de presenciar, as ondas espetaculares que surfamos, o fim do jejum de surfe e o fato de estarmos ilesos, coisa que por muito tempo em operações de pororocas era tão raro quanto a própria ocorrência do fenômeno.
Mas, se você está pensando que nessa expedição a ação acabava após o surfe, está muito enganado. O primeiro dia também é quando o Pajé da Tribo dos Auêra, Moyu Yararupi, mais conhecido como Marcelo Bibita, faz o já famoso ritual Auêra-Auára, onde ele evoca os espíritos protetores das matas e florestas para pedir licença para que todos possam entrar e sair do rio em segurança. E nesse dia, em especial, os batismos de Sérgio, que pela primeira vez presenciara a pororoca, e de Ruan, nativo de Arari que ainda não havia sido batizado por Bibita, ou melhor, Moyu Yararupi, também fizeram parte do ritual em um belo pôr do sol.
Após o ritual, ainda fomos avistar jacarés. O mais engraçado dessa parte da história foi quando perguntamos onde iríamos ver os jacarés e o pescador que estava nos levando apontou para o local estávamos nos banhando, dizendo: “ali, onde vocês estavam”. E não é que foi só o Astro Rei se despedir para começarmos a perceber o que pareciam pequenas luzes espalhadas pela Lagoa da Vida! Eram os olhos dos jacarés a nos espreitar, nos dando a dimensão da experiência que vivenciávamos. A essa altura já passava das 20h e o cansaço do dia intenso começava a cobrar seu preço. Então voltamos para o hotel para recuperar as energias e nos preparar para o segundo dia de aventura.
2º Dia – Pororoca de Mel
Ao contrário do primeiro dia, em que tínhamos de preparar toda a logística da operação, o segundo dia foi bem mais tranquilo, já que todos os equipamentos estavam testados e prontos para o uso. E junto com o nascer do sol nós saímos em direção à pororoca do Rio Mearim. Após cerca de 30 minutos de pura contemplação da natureza, avistamos a pororoca e iniciamos a “caçada”.
Uma “caçada” à pororoca é algo excitante e literalmente, adrenalizante. Enquanto você observa a força do fenômeno destruindo a margem, arrancando árvores e engolindo tudo em seu caminho, inevitavelmente você se imagina no meio de toda aquela força, afinal de contas, dali a alguns minutos é você quem estará frente a frente com o fenômeno.
Logo que nos posicionamos à frente da pororoca, nos deparamos com o momento mais importante da operação: a hora de saltar da banana e remar para entrar na onda. E nesse momento muitas coisas podem acontecer. Surfar a pororoca é bem diferente de pegar uma onda no mar. No mar, se você errar e não conseguir entrar na onda, basta esperar alguns minutos e surfar a onda seguinte. Mas, na pororoca não é bem assim. Caso erre o “ataque”, o surfista corre o risco de não conseguir surfar mais naquele dia. Isso acontece porque muitas vezes uma operação envolve muitos surfistas simultaneamente. Em algumas ocasiões, já presenciei mais de uma banana boat rebocando 12 surfistas cada. Acontece que enquanto o último surfista não salta da banana, o piloto do jet-ski não pode passar para trás da onda e iniciar os resgates. E algumas vezes, quando chega o resgate, a onda já terminou. Também não é incomum que o surfista salte certinho e bem diante de seus olhos a onda desapareça, fazendo com que este fique para trás. Ou o que aconteceu na primeira seção do segundo dia.
Avistamos a pororoca chegando bem longe e já tratamos de buscar o posicionamento. E tudo é muito subjetivo, pois como as bancadas mudam constantemente, a onda pode surgir em qualquer lugar, fazendo com que uma decisão errada possa comprometer toda a operação. O paraense Gilvandro Júnior foi o primeiro a saltar na água e logo garantiu o melhor lugar na onda com seu SUP Wave, uma parede lisa como mel e que não tinha fim. Em seguida, Bibita entrou na onda e deu início ao seu show particular sobre o longboard com largos cutbacks e um footwork progressivo com hang fives de quase um minuto em uma onda que mais parecia um “tapete mágico” espelhado como a superfície de um pote de mel.
Eu e Sérgio esperamos mais do que devíamos, e quando decidimos saltar, estava tão raso que o jet-ski não conseguia mais nos colocar à frente da espuma, a única maneira de se entrar em uma pororoca. E por cerca de 5 minutos ficamos observando nossos amigos surfarem a aquela “onda de mel”. Felizmente, na bancada seguinte nós conseguimos entrar na onda para celebrarmos todos juntos a alegria de estar vivendo aquela experiência tão fantástica!
O mel da Pororoca
Que Marcelo Bibita é uma das pessoas mais experientes em todo o mundo em operações na pororoca, isso todo mundo sabe, afinal, além de todas as pororocas conhecidas no Brasil, ele também já teve e oportunidade de explorar o fenômeno em países como a China e a Indonésia. E foi por estar cansado de ficar horas a fio sem fazer nada após as operações, esperando o dia seguinte para surfar novamente, que ele criou o ritual Auêra-Auára, o avistamento de jacarés e a partir dessa viagem, a degustação do mel da pororoca, como ele mesmo explica:
“Eu já havia ouvido falar que o município de Arari era um grande produtor de mel, mas nas dezenas de vezes em que estive aqui pra surfar a pororoca, nunca havia explorado essa atividade. E qual oportunidade de se fazer isso poderia ser melhor que no dia em que a própria pororoca me presenteou com uma onda de mel?”, explicou Bibita.
Com esse mote, partimos em busca do Sr. Chico Dentista, que nos recebeu em sua casa, incrustada no coração do município de Arari (MA), na região Nordestina conhecida como Meio-Norte. Na visita, Sr. Chico nos falou das dezenas de espécies de flores que cobrem a região e que propiciam a produção de mel durante o ano inteiro, uma condição rara para essa atividade. Mas, de todas elas, a que mais nos chamou a atenção foi a Flor do Mangue, naturalmente aquela que favorece a produção do mel mais doce, aquele que passamos a chamar de Mel da Pororoca.
3º Dia – Hora da Arribada
O terceiro também seria o último dia de operação com a banana boat e o jet ski, já que o equipamento havia sido locado para apenas três diárias e precisava retornar ao Pará, seu lugar de origem. E fomos presenteados com a onda mais longa de todos os dias. Foram quase 20 minutos de onda ininterrupta do momento em que a avistamos, até seu fim. Isso sem contar as outras duas sessões de mais ou menos seis minutos cada. Nesse dia, vi até que ponto vai a generosidade de Marcelo Bibita. Estávamos na última seção da onda, prestes a encerrar a operação. Bibita vinha surfando até que a onda enfim acabou. Nesse momento, nós já estávamos prontos para atacar a última bancada. Contudo, se voltássemos para trás da onda para resgatar o Bibita, provavelmente não teríamos tempo de voltar para a parte da frente da onda e surfar o último trecho. Nesse momento, Bibita fez sinal para que o piloto do jet-ski seguisse e que fôssemos surfar a última bancada. Naquele momento, conseguimos perceber a verdadeira essência do espírito Auêra-Auára no exemplo de generosidade e compromisso com o fenômeno e com a natureza, proporcionado por Marcelo Bibita, indelével nessa incrível experiência!
E antes mesmo de nós podermos agradecê-lo, Bibita já foi perguntando: quem topa surfar a pororoca amanhã sem jet-ski? No braço!
4º dia – Pororoca no Braço
Após três dias de intensas atividades, decidimos ficar em Arari (MA) mais um dia e surfar a pororoca no braço, isto é, sem o apoio do jet-ski e da banana boat, para só depois pegar a estrada em direção a Fortaleza (CE). Ainda contávamos com uma lancha, mas não tínhamos piloto. Então fomos com o Bibita pilotando até um igarapé, onde amarramos a lancha e passamos a esperar pela onda, na margem do rio. Assim que avistamos a pororoca, Ruan nos indicou o lugar exato onde deveríamos ficar. A onda chegou forte, contudo foi o trecho mais curto de todas as ondas que surfamos nessa trip. De qualquer forma, é sempre bom surfar a pororoca de maneira raiz, sem toda a parafernália que costuma envolver uma operação, como têm feito os nativos de Arari (MA) e de outras localidades, onde o fenômeno ocorre. É importante para mostrar que, para surfar a pororoca, o que você realmente precisa é de coragem e estar cercado de pessoas experientes.
Para Sérgio, que vivia tudo aquilo pela primeira vez, foi uma iniciação mais do que completa:
“Surfar a pororoca superou minhas melhores expectativas. Fiquei extasiado com a adrenalina com que tudo acontece, ao mesmo tempo em que me senti seguro por saber que estava perto de algumas das pessoas com mais experiência em pororocas no Brasil e no mundo. Espero poder em breve fazer tudo isso de novo”, declarou Sérgio.
Quanto a mim, peguei a onda mais longa que já surfei em mais de 20 incursões à pororoca do Rio Mearim, quase 15 minutos ininterruptos, para mais uma vez vivenciar a incrível sensação de surfar a onda sem fim na pororoca da Amazônia Nordestina. Auêra-Auára!
Marcelo Bibita finalizou a viagem profetizando que essa trip havia transformado toda a experiência do surfe na pororoca de Arari:
“Esse projeto foi um grande desafio. Eram muitas questões envolvidas: éticas, morais e claro, de saúde, afinal de contas, tenho 56 anos e sou profissional de Educação Física em formação. Surfe e saúde são duas premissas da maior importância na minha vida profissional e acadêmica. E isso criava uma pressão gigante, pois todos os protocolos teriam de ser seguidos disciplinadamente à risca por todos para que tudo desse certo. Sabíamos que se falhássemos, os primeiros a sofrer as consequências seríamos nós mesmos. Por isso eu tenho a convicção de que esse projeto só deu certo porque contou com o apoio e compromisso de diversas pessoas sem as quais nada teria acontecido. A confiança dos gestores de Arari (MA), nas pessoas do Jocei Ribeiro e Djalma Melo, secretário de meio ambiente e prefeito; a determinação da equipe de produção, com as talentosas Rayana Lopes e Jessica Mota, e o George Noronha encarando situações extremas; o olho clínico de Ruan; o churrasco de Noé; Bruninho do jet-ski; a experiência do pioneiro Gilvando Jr.; a energia de Serginho, que surfava a pororoca pela primeira vez… todos foram igualmente importantes para o sucesso desse projeto que eu, ou melhor, o Pajé Moyu Yararupi, a partir de agora, batizo de Pororoca Experience, a nova maneira de vivenciar o fenômeno da pororoca com responsabilidade, segurança, educação e claro, muita adrenalina. Auêra-Auára!”, finalizou Bibita.
Todos os participantes testaram negativo para a Covid-19 no retorno da operação e todas as visitas foram feitas seguindo os protocolos de saúde preconizados pelas autoridades de saúde locais, nacionais e internacionais, como uso de máscaras, higienização frequente das mãos e distanciamento social.
Apoiaram esse projeto: Secretaria de Meio Ambiente da Prefeitura de Arari (MA), Coast e Colection Boards.