Leonardo Sanguitam

Reflexões da quarentena

Fotógrafo Leonardo Sanguitam recorda os dias de liberdade com viagem ao point break dos sonhos.

0

Nem o mais pessimista de todos os surfistas poderia imaginar que viveríamos um momento tão peculiar na história da humanidade. Praias fechadas, polícia, decretos, polêmicas e o acesso ao nosso templo sagrado, que lava nossa alma, proibido em diversos lugares do planeta. Nunca nos últimos, pelo menos 30 anos, tantas ondas solitárias vão quebrar, até mesmo nos picos mais crowds do mundo. Parece um sonho (ou um pesadelo), mas a verdade é que essa será a nossa realidade contra um inimigo invisível.

Apesar de estarmos longe do mar e dentro das nossas casas quase que enclausurados, é impossível romper o vínculo com as ondas e a nossa ligação com o esporte e com o mar. Acabamos consumindo todo o tipo de mídia relacionada ao surfe através de filmes, vídeos e fotos disponíveis na internet com um papel fundamental das redes sociais, e, também, abrindo nossos próprios arquivos e contribuindo com parte da geração deste conteúdo.

Revirando meu HD encontrei memórias de mares alucinantes, recordações de boas histórias e de muitas trips com os amigos, estes, que fazem muita falta também nesse momento de isolamento social. O que chamou muita a atenção, dentre ondas perfeitas e diversos lugares, como uma das minhas experiências mais recentes me fez valorizar ainda mais o direto de ir e vir e a liberdade de sair de casa sem o medo constante de tudo e de todos.

Hoje percebo o quão maravilhoso foi ter a opção de escolher uma passagem aérea para qualquer lugar do mundo, sem restrições. No caso, o fato de ser livre, me levou a uma das ilhas mais incríveis que já estive na minha vida. Além de uma experiência cultural única, presenciei uma quantidade impressionante de diferentes tipos de onda em um só lugar: um point break com uma direta muito longa e, praticamente no mesmo pico, pro outro lado, uma esquerda tão poderosa e intensa, alguns longos shore breaks de direita e, é claro, alguns beach breaks super divertidos.

Sim, era uma viagem de sonhos de qualquer surfista mas, como nunca estamos satisfeitos, consegui alimentar certa frustração por não ter pego nenhum swell grande naquele pedaço de paraíso. Nunca poderia imaginar que em abril de 2020 eu estaria sonhando e estaria contente em apenas poder surfar o meu quintal de casa ou apenas querendo sair de casa e ver os amigos.

Vendo aquelas fotos hoje, parece que consigo sentir tempo depois, o quão surreal foi aquela experiência de poder fazer aquilo que permeia as fantasias que temos de explorar o desconhecido atrás de direitas e esquerdas perfeitas, mas naquele momento, como em muitos outros, talvez não tenha dado o devido valor pelo simples fato de ter a oportunidade de aproveitar a liberdade e viver um lugar diferente e apenas surfar, sem maiores preocupações.

Ver esse material, certamente me fez olhar a frente e seguir sonhando com dias melhores, com a volta de todos nós com segurança ao mar, que é o nosso lugar, onde somos felizes e suprimos nossas necessidades de alma enquanto amantes de água salgada.

Quem sabe depois que tudo isso passar não seja um tempo de nos redescobrirmos enquanto seres humanos, de vivermos com mais consciência e responsabilidade. O surfe tem um papel fundamental nesse contexto e nós surfistas temos o dever de sermos exemplo.

Pra quem se pergunta sobre a ilha que citei acima e que tem as ondas das fotos que acompanham esse texto, prometi a mim mesmo que vou voltar lá em breve, para quem sabe surfar uma grande ondulação, ou talvez não, mas certamente com um sentimento de gratidão simplesmente pelo fato de estar livre e com saúde. Da próxima vez, eu conto ela fica.