Desde que saí de casa o objetivo era surfar Regência (ES). Sempre sonhei em pegar essa onda, mas por algum motivo nunca fiz a missão para lá. Quando cheguei no Rio de Janeiro já comecei a monitorar o swell e esperar para ir na hora certa. Quando apareceu um balanço no radar eu dei um toque no Pepe, Petterson Thomaz, irmão que eu conheci há alguns anos na Indonésia. Moleque nota mil e com um dos surfes mais bonitos que eu já vi.
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Me joguei em uma barca que eu não conhecia ninguém e ele estava lá. Além dele, estavam Icaro Ronchi, Pato e Guga Arruda. Todo dia era show de surfe. Em uma trip dessas, teu surfe evolui mil vezes a mais do que numa viagem normal, cada toquezinho que os caras dão economiza anos de aprendizado na marra.
Liguei para o Pepe já acelerando o bicho, e ele se animou. Em cima da hora o swell não estava segurando tanto e ele acabou dando para trás. Mas, me conectou com um brother de lá e pelo menos eu já tinha uma base ali para quando eu chegasse.
A viagem de Búzios (RJ) para Regência leva mais ou menos oito horas. Acordei cedinho e comecei de novo a missão de arrumar as coisas para vazar. A trip foi uma delícia, mas a única coisa foda foi a chuva no caminho.
Quando programei o roteiro eu achei que levaria as pranchas na caçamba, aí depois que eu percebi a quantidade de coisas que eu estava levando, vi que as pranchas teriam que ir em cima. Sem rack, o jeito é meter a fita e seguir em frente. Fita e chuva não fazem uma combinação agradável.
Ficamos encharcados, o cachorrinho não estava entendendo nada, me olhou com uma cara como quem quisesse dizer “que porra é essa que está acontecendo? Como está chovendo dentro do carro?”.
Quando cheguei a Linhares a paisagem se transformou em um cenário de filme de faroeste americano. Aquela terra batida, muita lama, alguns bois, vacas e um horizonte infinito, essa combinação foi uma das coisas mais lindas que eu já vi.
Cheguei tarde e já fui jantar no único restaurante que está aberto na região. Só tem um restaurante e um supermercado abertos, nunca vi isso na vida.
O desastre de Mariana marcou o destino deste vilarejo, espantou o turismo, e aí veio a pandemia e terminou de quebrar as pernas de todo mundo. A água da região continua contaminada pela quantidade de minério que foi despejada com a avalanche de lama que veio de Minas Gerais.
Todos cozinham com água mineral, só esqueceram de me contar essa parte. Passei três dias cozinhando na água radioativa que sai da torneira. Eu estava com uma dor de barriga bizarra, cólica, diarreia, e não conseguia entender de onde estava vindo, pelo menos ali eu estava me alimentando bem por ter estrutura de cozinha.
Contei para um camarada e ele perguntou com qual água eu estava cozinhando, aí tudo fez sentido. Imagina viver num lugar em que você tem medo da água que sai da sua pia, é desesperador.
Pescadores não podem vender seus peixes, alguns vendem, já que é o único meio de subsistência que têm. A Vale indenizou algumas famílias, elas recebem um auxílio mensal.
Refletindo sobre a situação, me revolta ver a Vale ainda ser uma das empresas mais valorizadas na nossa bolsa de valores. Como pode? Se não bastasse Mariana, tivemos um segundo desastre ainda maior. Vejo todos discutindo em quem vão votar, esperando quatro anos para exercer seus direitos democráticos. Enquanto não entendermos que votamos a cada real que colocamos na economia, nada vai mudar.
Desabafos a parte, acordei e fui surfar. Cheguei no dia que estava apontando o swell, mas Regência é muito sensível ao vento, e ele muda a todo momento. A galera checa a previsão todas as noites porque muda muito. A boca do rio não estava lá essas coisas, mas dei um surfezinho para me ambientar.
No dia seguinte deu altas no point dois, uma bancada mais no meio da praia. A verdade é que tem a onda na praia toda, e por algum motivo a galera vai toda para dois picos específicos, point 1 e 2, provavelmente porque é onde tem lugar para parar o carro.
Quando eu vi a onda não acreditei, nunca tinha visto nada igual. Um tubo seco e rápido, na areia, correndo de lado, um monte de linhas transversais quebrando perfeitas em sincronia, parecia os vídeos de Skeleton Bay, fechando. O swell estava muito de Leste e só tinha esquerda.
Meu tubo de backside nunca foi lá essas coisas depois que bati a cabeça no fundo em Puerto Escondido (México) há alguns anos, perdi a confiança. Mas, uma hora tem que aprender. As melhores ondas do mundo são para a esquerda, não tem como ficar olhando e não surfar.
Entrei no mar e o bagulho estava fumando, tinham alguns prós na água e foi show de surfe. Cinco minutos depois de eu entrar, levantou um cotovelinho para direita e já deu aquela gana, não tinha como não ir.
“Faz o básico” pensei. Cabeça para baixo, a remada estava em dia, mas quando olhei pra onda o bagulho virou um mutante, fechando tudo e já não tinha mais como voltar. Botei para dentro, fui amassado no fundo, bati o cóccix, e a única coisa que passou na minha cabeça foi a prancha. Tinha acabado de fazer o pix para o Gula para pagar a prancha novinha para a trip, não durou mais de uma onda.
Dei mole forte, não botei fé nas histórias das pranchas quebradas ali. Só nesse dia foram seis. Saí correndo para buscar a outra e a única coisa que passava na minha cabeça é que agora era só esquerda.
Estava todo mundo se dando bem, mas o destaque foi Rafael Teixeira. O bicho fez um tubo bizarro, com muita técnica e estilo. Eu achei um também, sem saída, mas foi irado. Fazia tempo que não andava tanto em um tubo de back. Engraçado que se fosse uma direita eu não teria dado muita bola pra aquela onda, mas só por ter sido uma esquerda me deixou amarradão, o surfe é foda, não tem fim, sempre evoluindo.
O surfe foi só no point mesmo, a boca do rio estava mal, o fundo não estava bom, pelo menos para mim. O João Lucas estava quebrando o dia todo, maral fechando e o moleque dando três manobras na onda, não dá para entender o que esses malucos fazem.
Aproveitei que não ia dar onda na Régis no dia seguinte e fomos até Vitória atrás de uma prancha nova para a continuação da trip. No caminho eu vi uma porrada de bancada quebrando perfeito.
Achei uma prancha perfeita para mim e eu estava louco para por na água. No dia seguinte, a gente foi conferir as bancadas que tínhamos passado. Fomos surfar num secret, uma vala que quebra na “pqp” mas que mesmo de longe dava para ver o potencial. Cheguei lá fora e estava um crowd bizarro, todo mundo remando na onda de todo mundo, um em cima do outro e se rabeando.
Era uma direita, fiquei de canto pra pegar aquelas que passam fora da bancada que ninguém estava surfando. Levantou um carocinho ali do lado e eu fui, quando vi um cara veio remando lá do meio e entrou na onda comigo. Não falei nada e ele veio para cima de mim falando “a série aqui é dos locais, surfa lá pra baixo”.
Achei aquele bagulho bizarro, mas fiquei na minha e alguns minutos depois eu vi o mesmo cara discutindo com outro, mas dessa vez esse outro respondeu. Do nada ele foi rodeado por cinco caras e tomou um senhor apavoro. Eu entendo, sei como a cultura do surfe começou e que infelizmente isso faz parte da nossa história.
Mas, para mim o surfe é outra parada, é comunhão, evolução e aprendizado, transcende o ato de surfar. Como que você sai de casa pra surfar e volta mais puto do que estava? Não faz o menor sentido, me falo isso todo dia e tento levar uma relação mais saudável com o surfe, aprender a aprender sempre, assim fica mais fácil.
Passamos alguns dias naquele chove não molha, surfando na boca do rio e explorando a área. O swell que eu estava esperando finalmente chegou e o dia seguinte ia ser daqueles, a previsão era boa, o vento estava bom e a ondulação com bastante pressão. Acordamos às 4h30, o Kauai já não aguentava mais esse pique, até cogitei em colocar café na ração dele, será que pode?
Trombamos os moleques e fomos checar o point, mas mais uma vez o vento estava forte e o mar gigante, mexido e ruim. Eles decidiram ficar e eu meti o pé para o Pontal. Quando chegamos tinha altas, mas com uma correnteza bizarra e só um cara na água que não estava arrumando nada.
O Vasco, dono da pousada, tinha me falado de uma outra onda de boca de rio e me pediu para não falar qual é. Coloquei no GPS e decidi ir caçar. Quando chegamos, não dava para acreditar, tinha altas ondas e absolutamente ninguém na praia, só uma tiazinha pescando solitária e de máscara, vai entender.
Dava para ver o bagulho fumando lá na boca, mas a correnteza era de outro mundo, pior que em Regência. Parei o carro e fui para água delirando, berrando e agradecendo ao universo por aquilo. Quando entrei percebi que a correnteza ficava a milhão na praia toda, e talvez por isso não tinha ninguém ali.
“Ou, será que tem tubarão nessa porra?”, pensei. Em cinco minutos o êxtase se transformou em medo daquela água barrenta, que não me permitia ver nada em uma boca de rio cheio de peixe. Logo em seguida, subiram três golfinhos na minha frente, aí o cagaço aumentou 10 vezes.
“Porra, mas que que eu faço? Não tem como vazar, está muito perfeito”. Decidi ficar, mas a corrente era tão forte que eu saí da água e voltei umas três vezes antes de conseguir entender onde eu tinha que ficar.
Andava quase um quilômetro para chegar na boca do rio, quando eu entrava na água o bagulho me arrastava 500 metros em um segundo. “Meu Deus! será que eu não vou conseguir arrumar nada aqui? Não é possível”.
Consegui me posicionar e pegar a onda sempre quando eu entrava na água. O Kauai vinha atrás de mim até a boca toda vez, e eu ficava com muito medo da correnteza levá-lo, graças a Deus não deu nada e a gente se divertiu muito.
Surfei umas cinco horas nesse dia. Tá ligado aquelas quedas que você está sem comer nada, fritando no sol, desidratado e simplesmente não consegue sair da água? Foi exatamente isso, não tem sensação melhor, é inexplicável.
Foi o primeiro surfe com a prancha nova, estava meio difícil de entendê-la mas a gente já se deu bem de cara. Foi animal, muita onda, alguns tubinhos de orelha e muita vibe. Era hora daquele momento depois de um dia de altas, sentamos para tomar uma gelada e comer uma moqueca.
Ali eu percebi uma guerra cultural brasileira que não conhecia. Os capixabas fazem moqueca sem leite de coco e sem dendê, falam que a moqueca baiana não é moqueca, é uma “peixada”.
Os baianos falam a mesma coisa dos capixabas, dizem que sua moqueca é uma peixada. Desculpa meus amigos, mas moqueca de verdade tem que ser entupida de leite de coco e dendê, não tem o que falar.
Quando voltamos para Régis, os moleques contaram que pegaram o mar da vida em um secret ali perto. A onda era muito parecida com a que eu peguei, mas estava um pouco maior e com uma facilidade a mais de ficar ali no pico pra pegar a boa.
Quando eu fui comprar a minha prancha me mostraram uma onda que quebrava na frente de um estaleiro. Um tubo para direita bizarro, estilo Nias, chamam de Jurong. Fiquei de cara e pedindo pra galera me levar lá quando fosse quebrar.
O Felipe Queiroz, filmmaker lá de Noronha, estava na área filmando o Kristian Kymerson. Trocamos umas mensagens, mas cada um foi para um lado. Eles pegaram Jurong clássico, disseram que talvez seria a última vez que a onda iria quebrar por conta das obras que estão fazendo no estaleiro.
A sensação de impunidade que temos no Brasil faz com que isso seja recorrente. Como destruíram Regência e nada aconteceu, os endinheirados continuam fazendo o que bem entendem e a gente vai vendo os paraísos serem destruídos mundo afora.
Estava amarradão com o surfe que eu encontrei mas ficou aquela sensação de vontade de ter visto Jurong de perto, pelo menos fiz altos amigos e a galera já está me chamando para voltar. Com certeza em breve eu volto pra surfar e trombar a galera da Respect Surfe House.
Era segunda-feira e a previsão estava marcando que iria entrar um swell animal na sexta, fiquei na dúvida do que fazer, porque já estava há algum tempo por ali e eu queria subir para conhecer as ondas que nunca surfei na Bahia.
Acordei cedinho e o vento estava bufando, decidi arrumar as coisas e meter o pé que a estrada até o Sul da Bahia era longa. Dei um tiro até Itaúnas, a terra do forró, esperando encontrar algum agito pra tomar uma e conhecer gente, afinal já estava na missão do surfe há um tempão e os hormônios masculinos estavam começando a aflorar.
Depois de cinco horas de carro cheguei nessa vilinha muito massa, linda demais. Dá para ver que o bicho pega ali, mas com todo esse lance de Covid a cidade estava às moscas. Vários beach clubs fechados e ninguém na praia, uma tristeza em plena época de São João.
Não sei dizer qual a medida certa a ser tomada nesse momento, mas sinto desespero ao ver o mundo parado e as pessoas sofrendo por falta de oportunidade de emprego ou por conta da porra do Corona. Pior ainda é saber que tem muita gente com dinheiro querendo gastar e está assombrada dentro de casa.
O negócio é rezar pra que passe logo e ver que quando passar a prosperidade vai jorrar para todos que tem sofrido tanto nesse momento.
Cruzei a fronteira entre o Espírito Santo e a Bahia com a sensação de que não conheço absolutamente nada do Brasil. Como é possível eu nunca ter nem pisado nessa terra tão linda e cheia de onda perfeita.
O Brasil é imenso e cheio de onda boa, é nosso dever viajar por aqui. Temos que conhecer nossa terra e fazer a nossa roda girar.
Acompanhe Samir Murad no Instagram, @samir_murad.