O surfe inicia uma nova era – sem dúvida a mais importante em sua história – no próximo ano com a estreia nos Jogos Olímpicos de Tóquio e já é certo que o Brasil tem um nome marcado nessa trajetória. Com mais de 30 anos de palanque, o santista Marcos Bukão foi o escolhido para ser o diretor do campeonato que definirá os primeiros medalhistas olímpicos na modalidade.
O importante cargo na disputa é resultado de muita bagagem em mundiais – 46 no total, desde que a “caminhada olímpica” do surfe foi iniciada, em 1996, em Huntington Beach, Califórnia (EUA), quando o Comitê Olímpico Internacional (COI) reconheceu o esporte. De lá para cá, Bukão esteve no comando de todas as competições da International Surfing Association (ISA), responsável por transformar o surfe em esporte olímpico, muito pelo empenho e sonho do argentino Fernando Aguerre.
Desde que Aguerre foi eleito presidente da entidade, em 1994, Bukão é o diretor de provas em todos os mundiais e também participou do processo de elaboração do formato de disputas do surfe para Tóquio. “Difícil explicar com exatidão o sentimento”, fala o dirigente sobre a emoção de ser confirmado no cargo.
“É o tipo de sentimento que você acredita que vai, espera ir, mesmo antes da confirmação, mas não se permite considerar dentro, até para não se frustrar. Quando a confirmação oficial vem, não é exatamente surpresa, mas claro, é uma alegria e um sentimento de realização enormes”, diz Bukão, que antes da lista final, já tinha passado por dois “testes” de fogo e se credenciado muito bem para a função.
Primeiro o evento teste do COI em Tsurigasaki, praia onde serão realizadas as disputas do surfe nos Jogos Olímpicos, e logo na sequência os Jogos Pan-Americanos de Lima, no Peru. “Na verdade, a emoção da possibilidade de viver uma Olimpíada teve vários momentos que se somaram ao longo dos anos. Uma esperança distante, mas muito forte em 1996 quando o COI reconheceu a ISA e o surfe, um primeiro passo rumo aos Jogos”, destaca.
Ele também lembra da confirmação do surfe nos Jogos Olímpicos durante a reunião do COI em 2016 no Rio de Janeiro. Até aquele momento a emoção era muito mais pelo fato de o surf se tornar olímpico do que a possibilidade pessoal de ser escolhido. “A alegria foi grande quando me confirmaram para ser diretor no evento teste no próprio local dos Jogos”, relata.
“Fazendo uma analogia é como eu fosse um alpinista e ano passado sendo Contest Director dos Pan-Americanos de Lima eu tivesse subido o Aconcágua. E ano que vem em Tóquio será como escalar o Everest. Dentro da minha função é o máximo que alguém pode atingir”, relaciona.
Equipe Apesar de toda a sua expertise, a vivência em campeonatos desde 1983, ainda nos campeonatos locais em Santos, Bukão divide os “louros”, destacando um grupo muito competente que vem trabalhando junto há anos, sob o comando do presidente da ISA, Fernando Aguerre, e com os norte-americanos Erik Krammer, o diretor técnico em Tóquio, e Bob Fasulo, diretor executivo da ISA e com grande experiência em olimpíadas.
“Tenho a consciência plena da responsabilidade que o meu cargo envolve. Na verdade, existem dois lados, o puramente técnico, que nem é tão complicado, porque o formato olímpico não é tão grande e nem se compara ao World Surfing Games com centenas de surfistas, repescagens em todos os rounds com dois palanques simultâneos”, comenta.
Por outro lado, ele fala da responsabilidade de tudo correr perfeitamente bem, sem contratempos, polêmicas. “Enfim, ser um grande sucesso será de vital importância para a continuidade do surfe a longo prazo como esporte olímpico. Nesse ponto, é importante frisar que o termo estar à frente não é exatamente o que ocorre nos Jogos. Existe um grupo muito competente e preparado, além dos organizadores japoneses que nos disponibilizam toda e qualquer estrutura e o corpo técnico de juízes do mais alto nível”, complementa.
Junto à experiência, Bukão faz questão de evidenciar a imparcialidade, ponto fundamental em seu cargo e exigência da ISA. “Eu acredito que é questão de caráter e personalidade. Claro que depois de mais de 20 anos em mundiais a gente fica ainda mais frio em relação a emoções, mas nunca fui uma pessoa de me deixar levar por sentimentos pessoais ou por times ou bandeiras. Inclusive na ISA, a imparcialidade é prioridade número 1. Se nesses 25 anos em um único momento sequer eu tivesse deixado qualquer espaço para uma percepção de parcialidade, já estaria fora faz tempo”, revela.
Aos 64 anos, Marcos Bukão é engenheiro mecânico por formação, mas foi no surfe que construiu uma carreira. Começou a pegar ondas em 1972, aos 17 anos. Em 81 teve o primeiro contato com campeonatos na Associação Surf de Santos e dois anos depois, passou a organizar eventos, junto com os amigos Ika Cangiano e Fábio Botuão, o Jacuí.
Em 88, era o presidente da antiga Associação de Surf da Baixada Santista (ASBS), hoje a Federação Paulista, e quando foi criada a Abrasa – Associação Brasileira de Surf Amador, que depois se tornaria a atual Confederação Brasileira de Surf, foi convidado para ser diretor de provas da entidade, por seu perfil técnico. Desde então, é ele o responsável pelas etapas nacionais.
Ainda no Brasil, somam-se outros dois eventos que são referência no trabalho de base e têm a ‘assinatura” de Bukão junto com Silvio da Silva, o Silvério, seu amigo desde os tempos de ASBS e hoje presidente da Federação Paulista: o Hang Loose Surf Attack e o A Tribuna de Surf Colegial, que por décadas revelaram grandes nomes.
Batismo Na ISA, ficou conhecido em 1993, quando era team manager do Brasil no Pan-Americano de Surf na Venezuela. “Na ocasião houve um problema na hora de se formatar as baterias e o cronograma e eu me ofereci para ajudar. Com isso, conheci e ganhei a confiança de muitos chefes de equipes das três Américas. No ano seguinte, o Fernando foi eleito presidente da ISA durante o Mundial no Rio de Janeiro e me convidou para ser o diretor de provas dos mundiais”, recorda.
“Meu batismo na ISA foi em 1996. Por sinal um batismo de fogo, pois foi o maior evento da história da ISA em número de participantes e categorias envolvidas, além de ser o primeiro sob observação do COI”, enfatiza Bukão, que nesses anos todos foi diretor de nada menos que 20 World Surfing Games, 15 World Junior Championship, cinco mundiais master, três mundiais de longboard e seis mundiais de stand up paddle, viajando para 19 países.
Para ele, é difícil escolher o mais importante campeonato que esteve, mas logo vem a cabeça dois diretamente relacionados aos Jogos Olímpicos. O Mundial da Califórnia, em 96, por ter sido a primeira aproximação do surfe com o movimento olímpico, e o mais recente, ano passado no Japão, pela característica de seletiva olímpica e pela presença dos melhores surfistas do Championship Tour.
Os anos de experiência e os tantos mundiais que já atuou como diretor lhe garantem uma vantagem, o de conhecer praticamente ou na totalidade os competidores que estarão disputando as inéditas medalhas olímpicas. “Bem lembrado. Sou diretor de provas do Mundial Junior da ISA desde o início dessa categoria em 2003. Vi a maioria dos surfistas que estará em Tóquio vestindo a lycra da ISA como sub16 ou sub18. É uma satisfação enorme ver esses atletas agora em busca de um ouro olímpico”, fala.
Estreia do surfe terá 40 atletas A estreia do surfe como modalidade olímpica terá 40 atletas nos Jogos de Tóquio em 2021, sendo 20 no masculino e 20 no feminino. O número foi definido pelo Comitê Olímpico Internacional (COI). Marcos Bukão participou do processo de elaboração do formato de disputas e explica que são necessários quatro dias para que sejam definidos os primeiros medalhistas da história na modalidade.
Tanto homens quanto mulheres competirão da mesma forma. No round 1, os 20 atletas entram no mar, divididos em cinco baterias de quatro sufistas, sendo que os dois primeiros colocados já avançam diretamente para a terceira fase e os outros dois competem no segundo round, em duas baterias de cinco competidores. Nessa disputa, primeiro, segundo e terceiro seguem adiante, enquanto que quarto e quinto são eliminados.
Na fase 3 restarão 16 atletas, que competirão em baterias homem x homem (mulher x mulher), sempre avançando o primeiro colocado. No round 4, serão oito atletas, em quatro baterias, classificando quatro atletas para as semifinais. Nessa última disputa antes da finalíssima, serão duas baterias e os dois vencedores vão para a disputa do ouro e prata, enquanto que os dois perdedores surfam pela medalha de bronze.
Para Bukão, o adiamento dos Jogos para 2021 devido a pandemia do coronavírus não afetará em nada a parte técnica. “Ano passado, durante o Test Event em Tsurigasaki, já estávamos 100% prontos para fazer o evento, assim como estamos agora e estaremos daqui a um ano. Na parte organizacional, estrutura, logística, vai depender de como esse adiamento possa impactar o Comitê Organizador Local”, afirma.
“Mas pelo que conheço dos japoneses, pelo que vi tanto no Test Event como nos vários eventos da ISA que tivemos no Japão, tenho plena confiança em sua capacidade de realizar um evento impecável, a despeito de qualquer problema que o adiamento possa acarretar”, elogia.
Beach Break Tsurigasaki, a praia escolhida para as disputas do surfe, fica a 40 quilômetros de Tóquio e é um beach break, com uma boa consistência e com baixo risco de flat total. “Uma onda que quebra em múltiplos picos ao acaso, fundo de areia com algumas pedras nas laterais. A praia não é protegida em relação a vento e a direção do mesmo pode influenciar e muito na qualidade das ondas”, diz Bukão.
“O diferencial é que a costa japonesa recebe influência direta de tempestades e tufões no Pacífico, portanto o tamanho das ondas poderá variar muito em função de eventual ocorrência dos mesmos. Durante os dias do Test Event no ano passado, tivemos ondas de qualidade regular, alguns dias um pouco melhor, outros nem tanto, mas nenhum dia sem onda ou com ondas grandes e perfeitas. Não era nada diferente de vários beach breaks aqui no Brasil”, explica.
Para Bukão, o surfe nos Jogos Olímpicos é resultado direto da obstinação de Fernando Aguerre, que sempre acreditou que o esporte chegaria lá. “Um trabalho de décadas, com constantes reuniões junto ao COI e seus delegados, um trabalho muito forte no sentido de se trazer o maior número de países possíveis para a ISA, assim como ajudar essas nações a terem o surfe reconhecido por seus respectivos Comitês Olímpicos Nacionais”, argumenta.
“Foi um longo caminho”, completa o diretor de provas, que terá a companhia de outros dois brasileiros na parte técnica, o catarinense Luli Pereira, hoje um dos principais juízes da World Surf League (WSL) e o gaúcho Marcel Miranda, como juiz de prioridade.