Desde que a australiana Isabel Letham surfou em pé pela primeira vez, em 1915, ninguém segurou mais as mulheres no mar. Elas ainda são minoria, porém o número de mulheres surfistas vem crescendo.
E, melhor: as conquistas femininas têm sido arrasadoras. São muitas mulheres fazendo história no surfe – dezenas delas do Brasil – cada uma por um motivo, por sua biografia no esporte, fato que é celebrado pela World Surf League (WSL), defensora ferrenha de uma postura mais igualitária entre gêneros. Reconhecidamente, há guerreiras conquistando cada vez mais o seu merecido espaço em um cenário ainda dominado por homens.
Um exemplo recente é o da brasileira Maya Gabeira, que arrebentou ao surfar a maior onda do mundo e fortaleceu ainda mais o seu reconhecimento internacional com esse feito. Outra atleta de alta performance muito reconhecida no esporte é Silvana Lima, cearense que tem uma história brilhante: eleita oito vezes a melhor surfista do Brasil, é tricampeã brasileira e chegou ao vice-campeonato mundial por duas temporadas.
Agora, o voo de Silvana no mar será ainda maior, já que ela irá atrás de uma medalha com a estreia do surfe nos Jogos Olímpicos. Silvana representará o Brasil em Tóquio no ano que vem ao lado de outra fera, Tatiana Weston-Webb, sexta colocada no ranking mundial feminino do World Surf League Championship Tour. Outra que brilha é a jornalista Érica Prado, campeã baiana em 2006, que criou o “Movimento Surfistas Negras” para encorajar muitas a se arriscarem pela primeira vez no mar, levando várias delas ao surfe profissional.
Essa e outras conquistas femininas fazem com que as mulheres sejam mais valorizadas no surfe e quando a Liga Mundial do esporte tem iniciativas favoráveis neste aspecto, faz toda diferença. Esse é o caso da WSL, que entre seus atributos mais fortes está a defesa da igualdade de gêneros, com premiações de valores iguais para homens e mulheres aos títulos do Championship Tour (CT) e de todos os seus eventos/torneios.
“A equal prize money não é uma notícia nova. A WSL teve essa iniciativa tomando à frente no esporte. Porém, a informação continua ainda bem relevante, sobretudo por ser uma exceção na comparação com outras modalidades”, afirma Ivan Martinho, CEO da WSL para a América Latina. “A igualdade de gêneros está entre os nossos principais compromissos, juntamente com sustentabilidade e qualidade de vida”, completa.
Valorização das ‘meninas do surfe’
Para Silvana Lima, a iniciativa igualitária da WSL é incrível. “A decisão valorizou as meninas do surfe e provou que as coisas vêm mudando. Agradeço à WSL, porque essa igualdade de premiação ajudou muito, inclusive a mim”, diz a atleta que no torneio Onda do Bem, promovido pela WSL Latin America em setembro último, conquistou mais um troféu, como primeira colocada na categoria profissional feminina.
Tatiana Weston-Webb conta que no começo da carreira sentiu na pele o preconceito. “Eu tinha 14 anos e era a única menina surfando em Pipeline/Havaí, quando um surfista de bodyboard me disse ‘não vou gastar uma onda da série em você’ ”. No entanto, para Tati, hoje com 24 anos, isso ficou para trás.
“Atualmente todos têm muito mais respeito pelas mulheres que surfam e acho que falta muito para que os outros esportes cheguem ao nível do nosso esporte. Logo se vê pelo fato de a WSL ser uma das únicas ligas esportivas a ter igualado as premiações femininas e masculinas”. Recentemente, a gaúcha (que mora atualmente em Kauai/Havaí) abocanhou mais uma vitória: a de vice-campeã, ao lado da havaiana Brianna Cope, no Super Girl Pro, nos EUA.
Tanto para Tati quanto para Silvana, o foco agora está em conquistar uma medalha mais do que especial: na estreia do surfe nos Jogos Olímpicos 2021. “Todos os dias eu sonho com isso. É um evento top, que todos os atletas gostariam de estar e o mundo inteiro fica de olho. Surfar nas Olimpíadas ajudará nosso surfe brasileiro, pois ainda temos muito a crescer. Os empresários agora já ficam mais atentos ao nosso esporte, feminino e masculino”, diz Silvana, a 12ª colocada no ranking mundial, que também está focada na competição no Brasil em busca de mais um título nacional.
“Várias competições em 2021 servirão de treinamento para chegarmos mais fortes nas Olimpíadas”, conclui. Ambas também falaram sobre suas almejadas conquistas no Mundial no Surfe no ano que vem. “As Olimpíadas são muito importantes, mas também quero conseguir a taça do mundial do CT”, diz Tati.
A maior onda
“A velocidade era muito alta e com o barulho que a onda fez quando quebrou, percebi que esta era provavelmente a maior onda que surfei”, diz a carioca Maya Gabeira, que arrebentou ao surfar a maior onda do ano, de 22,4 metros, 73,5 pés (batendo o próprio recorde, de 20,7 m, 68 pés). Foi mais alta do que a do vencedor masculino, o havaiano Kai Lenny. Isso aconteceu no campeonato da World Surf League na Praia do Norte, em Portugal, o Nazaré Tow Surfing Challenge.
Maya ganhou o prêmio cbdMD XXL Biggest Wave 2020 e entrou para história, inclusive com sua conquista levada ao Guinness World. “É um acontecimento raro, é muito difícil no esporte em geral acontecer isso, ainda mais em um ambiente tão associado à coragem e à força, atributos que ainda são vistos como masculinos. Considero gratificante ser uma mulher capaz de estar neste patamar em um esporte extremamente dominado pelo sexo masculino, mostrando que surfar ondas gigantes é para ambos os sexos”, completa a atleta.
Superação e perseverança
A ex-surfista profissional e hoje jornalista e apresentadora Érica Prado, que recentemente venceu na categoria Celebridades Feminino do torneio Onda do Bem, conta que sentiu na pele a falta de representatividade de mulheres negras no ambiente do surfe, o que considera “reflexo do racismo cultural que a gente vive na sociedade”. A falta de patrocínio e de espaço nas mídias foram algumas das dificuldades que a atleta conta ter passado há 15 anos.
“Percebo um avanço, mesmo que ainda pequeno. Hoje temos muitos movimentos do surfe, as mulheres mais unidas e engajadas. E a iniciativa da WSL de igualar a premiação foi um passo de suma importância para o surfe feminino e o esporte em geral. Saber que a Liga está preocupada com isso é o que faz a diferença. Mas ainda há um caminho longo a percorrer”, afirma.
Em maio de 2019, Érica criou o Movimento Surfistas Negras, justamente com o objetivo de dar visibilidade e mostrar para o mundo que essas mulheres existem. O primeiro passo foi ter uma página no Instagram (@surfistasnegras).
“A partir do momento que coloquei essas mulheres na rede, o movimento ganhou uma proporção maior porque outras surgiram, mulheres do mundo inteiro, algumas que nunca surfaram porque não se sentiam representadas no esporte e, a partir dessa iniciativa, começaram a surfar. O Movimento abriu portas para várias meninas no esporte e sempre divulgo Julia Santos, Yanca Costa e Melissa Policarpo, entre outras. São mulheres que surfam pra caramba e que estão na luta e não têm patrocínio. Elas estão na situação que a Tita Tavares passou há 20 anos e que eu passei há 15”, completa.
A atleta baiana também está no projeto Na Praia Delas, que surgiu de um desejo de um grupo de meninas falar e fortalecer o surfe brasileiro. Érica conta que recebeu convite da surfista paulista Nayla Patrizzi (que hoje mora em Salvador), que também é professora de surfe e bióloga.
Depois, a paulista Potira Rolan (que mora em Santa Catarina), personal training, e a surfista caçula Yanca Costa (cearense radicada no Rio de Janeiro) se uniram ao grupo. Hoje o projeto tem um quarteto de mulheres de diferentes idades e estados, com um podcast e uma página no Instagram (@podcastnapraiadelas). “Todas às sextas-feiras levamos aos ouvintes a nossa visão sobre temas relacionados a mulheres no surfe”, conclui Érica.