É início de tarde de segunda-feira (19) e quase não dá para ver a faixa de areia do Porto da Barra, uma das praias mais disputadas de Salvador. Sombreiros abertos aplacam o sol de 28°C, e banhistas aproveitam as águas calmas que são porta de entrada para a Baía de Todos-os-Santos.
Mas o mar está impróprio para banho, segundo o último boletim do Inema, órgão ambiental do Governo da Bahia. “Não estava sabendo disso. Para mim, é uma surpresa”, diz Marcos Cerqueira, 43, que acaba de sair da água com aparência cristalina.
É a primeira vez que a capital baiana não registra nenhuma praia própria para banho o ano inteiro, cenário que se repete em outras cidades turísticas como Porto Seguro, no extremo sul da Bahia.
O quadro de piora na qualidade das águas se reflete no restante do litoral brasileiro. O país atingiu neste ano o menor número de praias classificadas como boas em seis anos, aponta levantamento feito desde 2016 pela Folha no verão, que começa nesta quarta-feira (21).
Apenas 29% dos 1.334 pontos monitorados de novembro de 2021 a outubro de 2022 ficaram limpos em todas as medições, contra uma média de 36% nos mesmos períodos anteriores. A conta não inclui 2020, quando o monitoramento sofreu um apagão por causa da pandemia.
Cresceu ainda o total de praias ruins na mesma comparação (da média de 10% para 13%). Já os números de locais regulares (26%) e péssimos (16%) se mantiveram no mesmo nível, mas aumentaram em relação ao ano passado. O restante dos pontos não teve medição (16%).
A piora é observada mais de dois anos após a aprovação do novo marco legal do saneamento básico, que estimulou a participação de empresas privadas nos serviços e definiu 2033 como meta para a universalização da água potável e da coleta e tratamento de esgoto.
Para Luana Pretto, presidente do Instituto Trata Brasil, só será possível ver os efeitos práticos da lei no meio ambiente e na qualidade de vida daqui a dois ou três anos —isso se não houver revogações sinalizadas pela equipe de transição de Lula (PT), vistas por ela como um retrocesso.
“Existe um ciclo: primeiro, há projetos de engenharia e licenciamento ambiental. Então, iniciam-se as obras, que duram em média três anos. Só depois teremos mais pessoas ligadas à rede e redução do esgoto bruto lançado nos rios e mares”, diz a engenheira civil.
Sinal disso é que os próprios índices de saneamento não melhoraram até agora. A parcela de brasileiros com coleta de esgoto só avançou de 55% em 2020 para 55,8% em 2021, mesmo ritmo dos anos anteriores. Já o índice de esgoto gerado tratado piorou (de 50,8% para 50,3%), com uma população que continua crescendo.
A poluição das praias é um termômetro dessa situação, já que o parâmetro usado é a quantidade de coliformes fecais no mar. Um trecho é considerado próprio para banho se tiver registrado menos de 1.000 coliformes para cada 100 mililitros de água, na semana de análise e nas quatro anteriores.
A partir daí, cada ponto é classificado como bom (próprio em todas as medições), regular (impróprio em até 25% delas), ruim (até 50%) ou péssimo (impróprio em mais da metade do período), seguindo método da Cetesb, companhia ambiental de São Paulo.
As informações são dos órgãos ambientais de 13 estados litorâneos, com exceção de Pará, Piauí e Amapá, que não monitoram, e Ceará, que neste ano disse ter sofrido um ataque hacker. Paraná e Rio Grande do Sul só medem na alta temporada, e Rio de Janeiro, Pernambuco e Maranhão continuam com muitos pontos sem monitoramento mesmo depois da pandemia.
A diminuição das praias consideradas limpas atinge todas as regiões do litoral brasileiro. No Nordeste, os estados que mais contribuíram para a queda foram Bahia, Rio Grande do Norte, Pernambuco e Maranhão. Nestes dois últimos, agora não há nem sequer um trecho bom.
No Sul, Santa Catarina e Paraná também registraram piora considerável em comparação ao ano passado, contrastando com uma melhora no Rio Grande do Sul. Já no Sudeste, São Paulo foi o principal responsável pelo recuo, em praias como São Sebastião, Ilhabela e Bertioga.
A Cetesb culpa as chuvas. “O primeiro semestre foi bem complicado, especialmente entre abril e maio. Já o segundo semestre não foi assim, e o número de praias impróprias está baixo”, diz Claudia Lamparelli, gerente do setor de águas litorâneas.
Quando chove, ligações clandestinas fazem o esgoto extravasar para as galerias pluviais (onde só deveria passar água da chuva), e ruas e valões têm sua poluição “lavada” para bueiros e córregos, incluindo fezes de animais que também possuem coliformes.
Um sistema que já não dá conta da demanda em tempos normais fica ainda mais sobrecarregado durante o verão, quando a população de muitas cidades litorâneas dispara —os pontos péssimos se concentram em 68 de 360 delas. Nas cidades do interior, os rios fazem o trabalho de carregar tudo isso até o mar.
“A gente está perdendo tanto no impacto sobre turismo e economia quanto na própria sociedade. Ainda temos uma quantidade de doenças hídricas no século 21 parecida à da Europa no século 19”, afirma o biólogo Clemente Coelho, da Universidade de Pernambuco.
Sem contar os problemas para a vida marinha, já que a presença de coliformes indica que outras substâncias estão sendo lançadas in natura nas bacias hidrográficas, como detergentes, resíduos sólidos e compostos químicos.
O também biólogo Mário Moscatelli, ativista ambiental no Rio de Janeiro, concorda que ainda é cedo para ver resultados do novo marco legal do saneamento. “Só vamos ter noção da diferença nos serviços de cinco a dez anos depois das concessões, visto o tamanho do passivo ambiental.”
Ele, porém, já vê progressos. “Eu reclamava havia 20 anos de um vazamento de esgoto na lagoa Rodrigo de Freitas [na zona sul carioca]. Duas semanas depois [que a nova empresa assumiu], o problema foi resolvido. Existe uma expectativa de melhora, antes não havia”, afirma.
Para o Instituto Trata Brasil, o principal avanço até agora foi a garantia de investimentos no setor. Segundo Pretto, presidente da organização, o investimento médio nos últimos anos foi de R$ 13 bilhões a R$ 15 bilhões ao ano, metade disso em São Paulo.
Só com os leilões já realizados, diz, há uma garantia de R$ 50 bilhões, com metas e punições previstas em contrato que antes não existiam.
Mas é preciso também, segundo Clemente Coelho, uma dose de interesse dos brasileiros. “Os dados de balneabilidade passaram a ser públicos desde a década de 1970, mas a sociedade nunca tomou isso para si a ponto de reivindicar melhorias”, avalia.
Fonte UOL