Golfinhos mortos começaram a aparecer na costa dos países banhados pelo Mar Negro ao longo do ano de 2022, após a invasão russa à Ucrânia.
O fenômeno não era inédito, mas chamou a atenção de cientistas devido à frequência muito maior do que o normal e pelo fato de os cadáveres não estarem perfurados por anzóis e arpões de pesca, como de praxe. Investigações internacionais sobre as razões exatas ainda estão em andamento, mas especialistas já listaram algumas hipóteses.
Os animais podem ter sido contaminados por metais pesados vindos de represas bombardeadas, sofrido o impacto acústico de sonares de navios e submarinos militares ou atingidos por mísseis que explodiram na água —ou por tudo isso.
Golfinhos, assim como outros animais marítimos e terrestres, fazem parte de um grupo de vítimas menos conhecidas da guerra da Ucrânia. O conflito, que mergulhou o país em uma catástrofe humanitária (ainda é incerto o número de vidas perdidas no confronto) há mais de dois anos, tem também consequências ambientais devastadoras.
“A guerra tem um impacto muito grande sobre o meio ambiente ucraniano, principalmente no sul do país e no litoral do Mar de Azov, onde há muitas áreas cultivadas, regiões de floresta e parques nacionais que foram destruídos completamente”, afirmou Igor Tumasov, ex-cônsul da Ucrânia no Brasil e atual responsável pela região das Américas no Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia.
Esse aspecto, geralmente negligenciado, foi trazido à tona por um relatório apresentado em fevereiro deste ano por uma equipe multinacional de autoridades ligadas à causa ambiental —o Grupo de Trabalho de Alto Nível sobre as Consequências Ambientais da Guerra, que possui, entre os membros, a bióloga e ex-ministra do Meio Ambiente do Brasil, Izabella Teixeira, e a ativista sueca Greta Thunberg.
Segundo o documento, a Rússia atacou, ocupou ou queimou grandes áreas de territórios ambientalmente sensíveis, com repercussão sobre todos os âmbitos da chamada tripla crise planetária —perda de biodiversidade, pressão sobre o clima e poluição crescente.
A lista de exemplos inclui a liberação de produtos químicos perigosos por indústrias destruídas, o impacto na qualidade do ar causado pela devastação de cidades e pelas queimadas de florestas, danos a áreas agrícolas e reservas naturais, destruição de infraestruturas hídricas e poluição da água e de ecossistemas marinhos.
O grupo afirma que o meio ambiente é uma vítima silenciosa do conflito e que tomar medidas para interromper a destruição e reparar os danos é urgente, e não “um luxo que deve ser adiado para o pós-guerra”.
Desde 2022, o Programa da ONU para o Meio Ambiente (PNUMA) vem se manifestando sobre “o legado tóxico” da guerra na Ucrânia…
Em 2023, a diretora executiva do programa, Inger Andersen, clamou pelo fim do que chamou de “destruição sem sentido” e lembrou que o impacto ecológico é também um impacto sobre o ser humano.
O ambiente tem a ver com pessoas: tem a ver com meios de subsistência, saúde pública, ar e água limpos e sistemas alimentares básicos.”
Inger Andersen, diretora executiva da ONU
Quase 50 bilhões de euros de prejuízo ambiental
Autoridades e ambientalistas ucranianos tentam documentar o impacto ecológico do conflito, apesar da dificuldade de acesso a zonas de guerra. Em alguns casos, recorrem a imagens de satélite e a sistemas de deteção remota.
Um levantamento divulgado em fevereiro pelo Ministério da Proteção Ambiental e Recursos Naturais contabilizou 3.612 casos de danos ambientais, com perdas estimadas em 56,7 bilhões de euros.
“As pessoas ao redor do planeta não sabem o que está acontecendo. Estamos sem recursos e com muitos trabalhadores voluntários”, afirmou o ministro do Meio Ambiente ucraniano, Ruslan Strilets, sobre a dificuldade de registrar os danos.
Kiev estima que a ofensiva russa tenha emitido ao menos 150 milhões de toneladas de gases de efeito estufa, como dióxido de carbono e metano.
Nas áreas ocupadas pelos russos – equivalentes a 18% do território ucraniano —, o governo diz que 2,4 milhões de hectares de florestas foram afetados.
“Um terço dos planos ambientais do país foi interrompido devido à guerra”, disse Vasylyna Belyo, chefe do departamento de clima da Ecodiya, uma das principais instituições ambientais da sociedade civil ucraniana.
A ONG desenvolveu um mapa virtual colaborativo que contabiliza evidências de ao menos 1.500 crimes ambientais em razão da invasão russa.
A equipe, reduzida após quatro integrantes terem sido enviados ao front, defende uma “reconstrução verde”, baseada em melhores práticas agrícolas, restauração florestal e soluções baseadas na natureza.
O colapso da represa
Descrita como “uma bomba ambiental de destruição em massa” pelo governo ucraniano, a ruptura da barragem de Kakhovka, em junho de 2023, é considerada a maior catástrofe ambiental desta guerra.
Imagens aéreas captaram a fúria das águas após a explosão da instalação, que tinha o maior reservatório da Europa em volume (18 km3) e o segundo maior em área de superfície (2.092 km2) e fornecia aproximadamente 5% da energia hidroelétrica do país.
Além de produzir energia, a usina abastecia a irrigação das terras agrícolas e os reservatórios de resfriamento da central nuclear da cidade ucraniana de Zaporizhzhya.
As inundações afetaram áreas controladas pelos russos e pelos ucranianos.
Segundo o Observatório de Conflitos e Meio Ambiente (Ceobs), 620 km2 de terra foram inundados nos três primeiros dias após o colapso, carregando produtos químicos e resíduos e destruindo zonas agrícolas, residenciais e industriais, além de seis áreas de importância ecológica.
As cheias também descarregaram metais pesados, pesticidades e detritos no Mar Negro, que levaram à proliferação de algas tóxicas e afetaram os habitats do fundo do mar.
Antes e depois de ataque russo atingir barragem de Nova Kakhovka, sul da Ucrânia
O colapso da represa de Kakhovka é a principal bandeira da Ucrânia para defender a responsabilização da Rússia por danos ambientais e a inclusão do crime de ecocídio (ou seja, crimes contra o meio ambiente) no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (TPI).
A Ucrânia conduz 14 investigações para subsidiar processos de ecocídio contra a Rússia no TPI.
Segundo Nadiya Stefaniv, juíza da Suprema Corte da Ucrânia, são casos como o suposto lançamento de produtos químicos em terras produtivas para reduzir a qualidade dos solos para a agricultura.
A juíza disse a Ecoa que a explosão da represa de Kakhovka “não foi a primeira tragédia ambiental e não será a última” desta guerra, mas tornou-se um símbolo por suas consequências devastadoras.
Durante a entrevista, na sede da Suprema Corte em janeiro deste ano, as sirenes de ataques aéreos soaram. O restante da conversa teve que ocorrer em um abrigo improvisado no subsolo do prédio, localizado na região central de Kiev.
O problema das minas – e de sua desativação
Em agosto de 2023, durante uma contra-ofensiva ucraniana, autoridades de Kiev disseram que o número de minas terrestres plantadas pelos russos era “insano” e que tinham encontrado uma densidade de até cinco artefatos explosivos por metro quadrado.
No fim do mesmo ano, o governo ucraniano estimou que cerca de 174.000 km2 —quase um terço do território do país— precisaria de desminagem, o que tornaria a Ucrânia o país mais minado do planeta, seguido por Afeganistão e Síria.
Embora a estimativa seja considerada exagerada por especialistas independentes, o problema das minas e munições não detonadas no país é real e deve levar décadas para ser resolvido.
Até junho de 2023, a organização Human Rights Watch tinha identificado a presença de minas terrestres em 11 das 27 regiões da Ucrânia, plantadas pelos dois lados do conflito.
A HALO Trust, ONG internacional de desminagem, calcula que até 2 milhões de minas tenham sido usadas nos dois primeiros anos da guerra. A organização afirma também que as terras agrícolas ucranianas foram dizimadas por minas e explosivos.
Além do impacto direto das explosões nos ecossistemas, o Grupo de Trabalho de Alto Nível sobre as Consequências Ambientais da Guerra cita outro desafio: o de remover os explosivos sem causar mais impacto, já que alguns métodos de desminagem podem causar danos ambientais irreparáveis.
O grupo defende a criação de um projeto para a remoção de minas em espaços naturais, geralmente não priorizados, e que o país encoraje práticas sustentáveis de utilização dos solos após a desminagem das terras.
Reconstrução verde
Em 24 de fevereiro de 2022, primeiro dia da invasão russa, um hospital na cidade de Horenka, próxima a Kiev, foi bombardeado. Um ano depois, o edifício havia sido reconstruído com duas novidades: uma central de energia solar e uma bomba de calor, que lhe daria autonomia energética durante cortes de eletricidade, comuns em tempos de guerra.
A recuperação do hospital de Horenka foi o projeto piloto do programa Green Reconstruction, promovido pelo Greenpeace com parceiros locais, que auxilia prefeituras de cidades ucranianas a reerguer edifícios públicos usando tecnologias ambientalmente sustentáveis.
Mesmo que o fim da guerra não esteja à vista, uma série de organizações preconizam uma reconstrução baseada em tecnologias verdes.
Quando o conflito completou um ano, a Comissão Europeia lançou o programa Phoenix, para apoiar autoridades ucranianas com estratégias de recuperação verde.
“Embora um rápido regresso à normalidade seja essencial, fixar-se no tipo errado de futuro é perigoso”, diz um documento do programa, produzido por especialistas da Universidade de Oxford, que defendem que a Ucrânia “emerja das cinzas da guerra” para um novo modelo menos dependente de combustíveis fósseis e descarbonizado.
O Grupo de Trabalho de Alto Nível sobre as Consequências Ambientais da Guerra também destacou esse ponto em seu relatório, afirmando que, embora cientes das “enormes demandas e necessidades sociais que competem por recursos”, consideram fundamental que o país faça uma transição para um modelo econômico com maior eficiência energética e menor emissão de gases do efeito estufa.
Entre as sugestões oferecidas, está implementar diretrizes para reciclagem de distritos de construção e para o descarte seguro de resíduos tóxicos, especialmente o amianto, que é um agente cancerígeno.
Fonte UOL