Está ficando quente e não é só impressão. Estudo inédito realizado pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) avaliou as ondas de calor ao longo da costa brasileira pela variação na intensidade e frequência de eventos extremos de temperatura. A pesquisa demonstra que está se tornando mais frequente encontrar temperaturas cada vez mais altas na costa sudeste e sul do país.
O estudo avaliou uma série histórica com dados de temperatura do ar observados a cada hora do dia ao longo dos últimos 40 anos em cinco regiões costeiras do país: MA (São Luís), RN (Natal), ES (São Mateus), SP (Iguape) e RS (Rio Grande).
A partir destes dados, os quatro pesquisadores do Instituto do Mar (IMar/Unifesp) envolvidos utilizaram modelos matemáticos para definir o que seriam extremos de temperatura para cada uma das regiões, pois em um país tão grande quanto o Brasil e com clima tão diverso, uma determinada temperatura pode ser extrema em uma região e normal em outra. Além disso, diferentes temperaturas podem ser consideradas extremas dependendo do mês do ano em cada local.
Com esta pesquisa detalhada, foi possível observar como a frequência e a intensidade dos valores de temperaturas máxima e mínima, a variação da amplitude térmica ao longo do dia e as mudanças abruptas de temperatura entre dias consecutivos variam em cada região e época do ano.
O estudo “The increase in intensity and frequency of surface air temperature extremes throughout the western South Atlantic coast” foi publicado nesta terça-feira, 25/4, na revista Scientific Reports do grupo Nature, uma das mais prestigiosas revistas científicas no mundo, e que foi a quinta revista mais citada mundialmente em 2021.
As ocorrências de temperaturas extremas e as ondas de calor e frio
Eventos extremos de temperatura quente ou fria são parte da realidade climática do mundo. Porém, os efeitos das mudanças climáticas são visíveis e alteram esse padrão. “Um dos exemplos práticos das mudanças climáticas é o aumento na intensidade e na frequência de eventos extremos de temperaturas quentes e frias.
Uma ocorrência de temperatura extrema ocorre quando uma dada temperatura máxima ou mínima excede um ‘limite’ esperado e característico da região. Uma onda de calor ou de frio corresponde a um evento extremo e é caracterizada por um período de alguns dias com temperaturas máximas superiores ou mínimas inferiores ao limite esperado para a época do ano”, explica William Conti, pesquisador do IMar/Unifesp e responsável pela modelagem matemática dos dados obtidos na pesquisa.
Como definir este ‘limite’ no tempo e no espaço foi o objetivo principal do estudo. Será que um extremo de temperatura no sul do Brasil e no norte do país tem o mesmo valor? Será que estes limites estão mudando ao longo dos anos? E dentro de um mesmo ano, será que uma dada temperatura pode ser extrema em uma estação do ano sem ser nas demais? E, em menor escala temporal, como está a variação de temperaturas máximas em dias consecutivos?
E como está a diferença entre as temperaturas máximas e mínimas em um mesmo dia? Estas foram as perguntas norteadoras da pesquisa realizada por pesquisadores da Unifesp que avaliou os padrões sazonais e diários. Estes impactos foram medidos em termos de ocorrências (dias em que um extremo aconteceu) e de eventos (dias seguidos da ocorrência de extremos, caracterizando uma onda).
O estudo mostrou que toda a costa brasileira já está sofrendo algum impacto das mudanças climáticas em relação à temperatura do ar, com os litorais das regiões Sudeste e Sul sendo mais impactadas do que das regiões Norte e Nordeste onde, apesar de existirem extremos de temperatura ao longo de todo ano, eles não estão aumentando em frequência ou intensidade.
Porém, no Sudeste e Sul do país, o cenário é diferente. Nos litorais de RS, SP e ES, a frequência de ocorrências diárias de extremos máximos de temperatura e das ondas de calor, caracterizada por dias consecutivos de extremos máximos de temperatura, tem aumentado ao longo dos anos. Além disso, a frequência de ocorrências diárias e de eventos de ondas de frio no ES tem aumentado.
“Estes dados mostram como as regiões Sudeste e Sul do Brasil já se encontram com impactos da temperatura do ar e que irão afetar a biodiversidade e até a economia”, destaca Fábio Sanches, autor da pesquisa e pós-doutorando pelo IMar/Unifesp. “Identificamos o litoral do ES como a região mais afetada dentre as que estudamos, pois além das ondas de calor, foi a única região onde a frequência de ondas de frio é cada vez maior”, explica Sanches.
Além da frequência de eventos no Sudeste e Sul, um dado sobre a intensidade das temperaturas mínimas extremas chamou a atenção dos pesquisadores: no litoral do RS, a temperatura mais baixa (frio extremo) é cada vez maior. “Isso significa que está ficando cada vez menos frio no sul do país, o que pode ter impactos na produção agrícola e até no turismo”, analisa Ronaldo Christofoletti, coordenador da pesquisa, bolsista produtividade do CNPq e professor do IMar/Unifesp.
Nos últimos 40 anos, a ocorrência de eventos extremos de temperatura quase dobrou em SP (84%), dobrou no RS (100%) e quase triplicou no ES (188%). O número de eventos por ano é variável, dependendo de condições específicas como pelos fenômenos El Niño e La Niña, mas, se considerarmos uma média, no ES, a taxa de aumento de eventos extremos é, em média, de 4,7% ao ano, enquanto em SP é, em média, de 2,1% e, no RS, de 2,5% ao ano.
“As mudanças dos padrões de eventos extremos na costa brasileira são um sinal importante de alerta para a vulnerabilidade climática do Brasil como um todo. Este estudo confirma que a emergência climática não é futurologia e sim parte de uma realidade que temos que enfrentar, combatendo suas causas com ações concretas de mitigação e com políticas públicas eficazes de adaptação”, alerta Ana Toni, secretária nacional de Mudança do Clima do Ministério de Meio Ambiente e Mudanças Climáticas (MMA).
Além de avaliar os extremos de temperatura máxima e mínima, os pesquisadores avaliaram outros dois fatores: primeiro, as possíveis variações da amplitude térmica ao longo de um mesmo dia (Tmax – Tmin), e depois se existiam mudanças ‘bruscas’ de temperatura, a partir da comparação da temperatura máxima ou mínima entre dias consecutivos. Para estes indicadores, a pesquisa mostrou que toda a costa brasileira apresenta alterações climáticas.
“Compreender a amplitude térmica diária e também as variações de temperatura entre dias consecutivos é importante para compreender a dinâmica climática e seus potenciais impactos, como a chegada de frentes frias e também da regulação de chuvas”, destaca Fernando Martins, professor do IMar/Unifesp e pesquisador da dinâmica climática, além de bolsista produtividade do CNPq.
A região do RN foi a única que não apresentou variações na amplitude térmica diária. Porém, é cada vez mais frequente encontrar dias de maior amplitude térmica no Maranhão. Além disso, o estado do MA foi a única região que demonstrou aumento do número de dias consecutivos com amplitude térmica maior.
No Sudeste e Sul, as alterações térmicas são ainda maiores. Além do aumento da frequência de dias de maior amplitude térmica, as regiões de ES, SP e RS apresentaram aumento na intensidade da variação térmica diária, o que significa que é cada vez mais frequente encontrar dias cada vez mais variáveis na temperatura.
“Diferente das ondas de calor e frio que indicam situações extremas de temperatura, os dados de amplitude térmica diária apontam mudanças de temperatura ao longo de horas que estão mais associadas ao nosso conforto térmico ao longo do dia”, ressalta Sanches.
Ao avaliar as mudanças abruptas de temperatura entre dias consecutivos, o padrão da costa brasileira se inverteu, com MA e RN apresentando mais impactos do que o Sudeste e Sul brasileiros. No MA e RN, foi observado aumento de mudanças abruptas tanto das temperaturas máximas quanto mínimas em dias consecutivos, sendo que, no MA, foi ainda observado que o número de dias seguidos em que as temperaturas máximas variam muito entre dias é cada vez mais frequente.
O ES, que havia apresentado muitos impactos referentes às ondas de calor, frio e a amplitude térmica diária, não apresentou nenhum impacto quando analisando as variações entre dias consecutivos. Já para SP e RS, existe um aumento da frequência de eventos onde a temperatura máxima entre dias consecutivos é muito variável.
“Compreender as variações de temperatura em um mesmo dia e entre dias consecutivos traz uma relação direta com impactos fisiológicos e até na saúde pública, pois muitas das doenças respiratórias e da nossa sensação de bem-estar está associada a variação da temperatura”, lembra Christofoletti.
Os impactos das variações de temperatura
“O aumento de ondas de calor e de frio tem vários impactos na sociedade em todo o mundo, que vão desde o desconforto térmico até o aumento de incêndios florestais, problemas de saúde e da mortalidade de animais, plantas e dos seres humanos, especialmente, idosos e pessoas em situação de vulnerabilidade.
Estudos recentes demonstram um aumento de quase 70% na mortalidade de idosos devido ao calor intenso. Ao longo dos últimos anos, foram vários casos de mortalidade por ondas de calor como vistos na Espanha, Canadá e Portugal, por exemplo”, relata Christofoletti.
Os impactos das variações de temperatura também impactam a biodiversidade. “Diversas espécies de animais marinhos têm apresentado alterações fisiológicas, de mudança de comportamento e até da distribuição de onde vivem em função das ondas de calor e frio. Eventos extremos de temperatura podem ocasionar mortalidade em massa de recursos pesqueiros e influenciar as cadeias de pesca, especialmente, as da pesca artesanal”, afirma Sanches.
Além dos recursos pesqueiros, Christofoletti pontua que “o agronegócio brasileiro está ameaçado por estas variações. A produtividade é dependente do ciclo anual de temperatura e chuva, e as alterações de extremos e de amplitude térmica podem baixar a produtividade, a qualidade da produção ou mesmo levar a perda da safra. Especialmente no sul do país, com os dados de que as temperaturas mínimas estão cada vez mais quentes, pode levar a uma alteração do sistema produtivo nas próximas décadas”.
A variação de extremos de temperatura e também da amplitude térmica diária e em dias consecutivos pode intensificar eventos de chuva extremos, como os vistos na costa de São Paulo em 2023.
“O regime de chuvas está associado à temperatura do ar, evaporação, temperatura do oceano e sistemas de pressão atmosférica que produzem os ventos. A dinâmica da condição meteorológica associada aos eventos extremos ou mudanças abruptas entre dias consecutivos é propícia para influenciar o volume e a intensidade de chuvas e pode levar a tragédias como ocorrida no litoral norte de São Paulo em fevereiro, que foi resultado de dias muito quentes, oceano mais quente, maior evaporação de água e massas de ar e ventos que atingiram a costa”, detalha Martins.
“Nosso estudo demonstra para diferentes regiões da costa brasileira como as ondas de calor, frio e amplitude térmica diária estão variando. Estes dados permitem passos futuros para entender a influência destas variações em índices da agricultura – por exemplo: produção agrícola de espécies regionalmente importantes -, saúde pública – tipo o aumento de casos de problemas respiratórios ou de mortalidade de idosos em períodos de ocorrência de extremos de clima -, e da importância das políticas públicas locais, regionais e nacionais”, fala Christofoletti.
“O Governo Federal têm destacado a importância da resiliência climática e dos planos municipais e estaduais para enfrentamento climático. Para isso, é essencial conhecer como as mudanças climáticas já estão impactando cada região, como contribui nosso estudo”, complementa Christofoletti.
Porém, um desafio foi destacado pela equipe de pesquisadores: “os estudos para as mudanças climáticas demandam dados históricos e contínuos de monitoramento. Para se entender a situação atual dos eventos extremos e para prever cenários futuros que auxiliem nos planos de resiliência costeira, é urgente que ampliemos as estações de monitoramento de dados meteorológicos na costa brasileira.
Pesquisas como esta demandam longas séries temporais de dados contínuos e de grande confiabilidade. Os governos municipais e estaduais devem ampliar as estações de monitoramento nas regiões. Os custos de instalação e monitoramento para estes governos são, certamente, menores do que os gastos necessários para recuperar posteriormente os impactos dos eventos extremos nos setores econômicos e da saúde pública”, comenta Sanches.
“Além de garantir os dados locais e regionais continuamente sendo obtidos, é essencial que eles sejam de livre acesso para a sociedade e para as universidades. Muitas pesquisas em parceria entre os governos e universidades locais podem ajudar a compreender o clima local e fortalecer as ações nos municípios”, diz Sanches.
Com os dados disponíveis no momento para os municípios indicados, a pesquisa avaliou a variação ao longo dos últimos 40 anos que refletem as regiões próximas. “Um dos diferenciais do nosso estudo é fornecer informações que mostram o que possivelmente é um extremo em cada mês no atual momento. Entender as limitações dos dados também é um passo importante”, indica Conti.
“Primeiro, os valores de extremo são considerados segundo os padrões de temperatura do ano e dos períodos recentes. Portanto, em séries temporais longas, eles variam ao longo dos anos, por isso é essencial um monitoramento contínuo [exemplos detalhados abaixo]. Segundo, ao pensar em valores extremos, muitas pessoas buscam apenas o extremo máximo e mínimo do ano.
Porém, é importante compreender mensalmente estes valores. Às vezes, no Sudeste e Sul, teremos um valor de temperatura em julho que não é um extremo para o ano, pois neste período do ano são esperadas temperaturas máximas mais baixas do que em janeiro. Porém, essa dada temperatura pode ser um extremo para aquele mês de julho e trazer impactos para animais e plantações naquele momento”, compara Conti.
Conforme demonstrado pela pesquisa, os valores extremos variam ao longo dos anos. Porém, para efeito de referência em 2023, os pesquisadores indicaram os valores máximos e mínimos para todo o período e os valores atuais que, possivelmente, podem ser considerados como temperatura extrema no litoral de cada região com base na mediana das temperaturas extremas em cada mês dos 40 anos de dados. Estes valores possuem uma influência regional em função das cidades onde a estação metereológica se encontra.
Valores limites atuais de temperatura para os quais valores acima do Tmax ou abaixo do Tmin podem ser considerados extremos de calor ou frio, respectivamente. Destaca-se que estes valores são para o momento atual e que irão variar ao longo dos próximos anos devido aos impactos das mudanças climáticas.