Silenciosamente a lama desceu o Rio Doce, amargando suas águas, pintando de vermelho toda a rica e colorida paisagem, desde pequenos rios até a sua foz. No dia 21 de novembro de 2015, 14 dias após o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), os rejeitos de mineração da Samarco e Vale se assentaram no estuário.
Na foz do Rio Doce encontra-se a Vila de Regência, um distrito da cidade de Linhares (ES), que possui no cotidiano e na história uma íntima relação com o rio e com o mar. A lama, oriunda da barragem de rejeitos da mineração de ferro, provocou transformações na região e afetou aspectos materiais e subjetivos.
Entre os danos mais diretamente perceptíveis estão a contaminação da água dos lençóis freáticos, do Rio Doce e do mar. Por consequência, ocorreu a diminuição da biodiversidade com a morte de várias espécies que habitam estes ecossistemas. A pesca foi proibida e as plantações de muitas famílias de agricultores foram inviabilizadas. De maneira subjetiva, muitas culturas foram afetadas ao longo do trajeto da lama, desde o povo Krenak, que considera o rio como um ser vivo, até a cultura da pesca e do surfe.
Do ponto de vista das Ciências Ambientais, o que este episódio nos revela? Ele aponta para uma multiplicação de fenômenos, todos conectados por uma complexa rede. Estamos diante de algo inédito para a comunidade científica mundial. Para iniciar a compreensão dos impactos é necessário, pelo menos, um aparato de pesquisa extremamente sofisticado, capaz de cruzar dados a partir de múltiplas variáveis, desde análises dos solos, das águas, da biota, e inclusive o monitoramento sistemático das pessoas que estão em contato direto com suas águas. Mesmo assim, os instrumentos e as técnicas de pesquisa não dão conta do tamanho do problema. É necessário também compreender a partir do ponto de vista dos moradores das regiões atingidas.
Por meio das lutas populares, pescadores, ribeirinhos e comerciantes tiveram seus direitos reconhecidos pela justiça. Entretanto, muitos atingidos ficaram de fora das compensações. Além disso, na foz do Rio Doce, local do encontro do rio com o mar, foram criadas ao longo de milhares de anos, as condições ideais para desenhar uma onda perfeita, capaz de colocar o Brasil no cenário mundial do surfe.
Quando a lama chegou o surfe era o principal responsável pelo crescimento do turismo na Vila de Regência. O rompimento da barragem, neste sentido, atingiu drasticamente a promissora cadeia produtiva do surfe. Esta trama complexa envolve várias gerações de surfistas estruturadas em rede, que articulava de forma local os campeonatos. Desta forma, pousadas eram ocupadas, os técnicos especializados no esporte puderam se consolidar de maneira mais profissional, influenciando inclusive a criação de escolas e serviços diretos e indiretos.
Não obstante, o maior dano aconteceu na Boca do Rio. A principal onda de Regência, uma esquerda quilométrica, com três seções de tubo e várias seções de manobras nunca mais quebrou de gala. Hoje a deposição de sedimentos na foz do rio não só absorve a maior parte da força das ondulações, mas provocou drásticas mudanças no perfil de praia, atingindo a fina sintonia que a Mãe Natureza criou para dar forma a esta Dádiva: a Onda da Boca do Rio, esta entidade, que perdeu o direito de continuar quebrando limpa e perfeita na melhor arena do surfe capixaba.
Este triste episódio no surfe nacional abre para novas questões: que tipo de contaminantes estão dispersos no litoral que podem prejudicar a saúde dos praticantes de surfe? Quais são os principais conflitos socioambientais envolvendo o surfe por conta da poluição hídrica e da diminuição da qualidade ambiental no Brasil e no mundo?
O documentário acima apresenta uma síntese do ponto de vista de seis surfistas locais de Regência : Ramon Ivo, Fabrício Fiorot, Francelino Neto, Ranin Thomé, Hauley Valim e Vasconcelos Zuqui. O material foi produzido por meio de um diálogo entre o Instituto de Biodiversidade e Sustentabilidade da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em Macaé, o Núcleo de Estudos e Pesquisa em Educação, Filosofia e Linguagens da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e a Associação de Surf de Regência (ASR).
Rafael Nogueira Costa é biólogo e professor do Instituto de Biodiversidade e Sustentabilidade da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Hauley Valim é surfista local de Regência.