Surfistas – profissionais ou não – costumam comemorar feitos e avaliar o desempenho com base no tamanho da onda e nas manobras realizadas enquanto deslizam no mar.
No entanto, para Guilherme Rigoni, Adailton dos Santos (Dadá), Raphael Guilherme dos Santos Nascimento (Rapha), Igor Henrique e Guilherme Mizael, a alegria não vem do gigantismo das ondulações ou dos malabarismos executados. Para eles, estar sobre a prancha (em pé ou deitado) e deslizar alguns metros, mesmo que seja no raso, já é uma conquista espetacular.
São pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida. A maioria está na primeira turma de 80 alunos da Escola Pública de Surfe Adaptado, inaugurada quinta-feira, 2 de janeiro, no Posto 3 (praia do Gonzaga), em Santos – uma parceria da Prefeitura Municipal e da Blue Med Saúde, que vai garantir a contratação de instrutores e terapeuta, além de equipamentos e uniformes. Alguns desses surfistas já frequentavam aulas na Escola de Surfe do Posto 2, mas agora contam com um espaço e atenção exclusivos. As unidades são coordenadas pelo consagrado e pioneiro surfista Cisco Araña.
“Estamos vivendo um sonho. O surfe é uma excelente ferramenta para ajudar a melhorar a qualidade das pessoas. Possibilita o encontro, a convivência com o outro, a inclusão, o abraço. Eu aprendo muito com as pessoas com deficiência. Aprendo com a mesma intensidade com que eles sentem o prazer de estar no mar. Eles aprendem, também, e têm oportunidade de conquistar mais espaço e momentos de felicidade através de um esporte que, durante anos, foi estigmatizado. Sem felicidade não há saúde. As pessoas precisam ser abraçadas, cuidadas. Eu me tornei um ser humano melhor, passei a entender o mundo do outro”, diz Cisco.
Mudanças radicais
Guilherme Rigoni tem 38 anos. Dez anos atrás, era um auxiliar administrativo que gostava de surfar nos finais de semana. Pura diversão. Nada radical. Hoje, qualquer onda que ele ‘pega’ é comemorada com alegria, vitória diante de um desafio gigantesco.A data não sai da memória: no dia 21 de fevereiro, ele completa uma década vivendo sobre cadeira de rodas. Ficou tetraplégico, após fraturar duas vértebras ao mergulhar na piscina.
Ele conta que, com “muita força de vontade, apoio da esposa e da família” e duas internações, exercícios de reabilitação e check-ups anuais no Hospital Sarah Kubitscheck, em Brasília, ganhou força e um pouco de movimento nos braços. Surfa deitado na prancha adaptada, projetada por Cisco Araña, que o recebeu na escola do Posto 2, há cerca de seis anos. “Impossível descrever a sensação de poder fazer algo que você adorava fazer, mas que, de repente, passou a parecer impossível, impensável. O surfe é motivacional, aumentou minha autoestima. É um esporte que une as pessoas. Só de poder participar, estar na água, já é fantástico”, afirma Rigoni.
Superar limites também faz parte da vida de Raphael Guilherme dos Santos Nascimento, que completa 18 anos no dia 8 de janeiro.Vítima de paralisia cerebral, causada pela demora no parto, Rapha, enfrentou UTI e vários passagens por consultórios médicos.
A mãe, Fabiana dos Santos, recusou o diagnóstico de que o filho jamais andaria. Largou o emprego e iniciou a busca por atendimento especializado. Conheceu mães cujos filhos tinham a mesma deficiência, recorreu a instituições como a Casa da Esperança.
“Com um ano e dois meses, o Rapha começou a sentar. Com dois anos e meio, engatinhava”, conta ela, emocionada.
O menino ainda passou por cirurgias no pé e joelho (duas). “Quando chegou à escolinha de surfe (Posto 2), aos nove anos, havia acabado de fazer a primeira operação no joelho. Entrou no mar com o Cisco e gostou. Uma semana depois, já apresentava melhoras. Após oito meses, deu os primeiros passos. Aos dez anos, começou a andar. Parou para a segunda cirurgia, mas, assim que tirou o gesso, pediu para votar. O mar é a vida dele. Chegou aqui de cadeira de rodas e hoje anda solto, sozinho”, diz Fabiana. Ela fala e os olhos marejam – “é sempre assim, não tem jeito”. Lembra das dificuldades do início: “Você recebe tanto ´Não` que, quando cheguei aqui e o Cisco disse ´Sim`, fiquei até com medo. Hoje, o Rapha tem uma melhora atrás da outra. É muita emoção”, diz, enquanto acompanha, da areia, inquieta, o filho deslizar sobre a prancha, sob olhares dos instrutores.
Paralisia cerebral também tem Adailton dos Santos, o Dadá, de 27 anos. Morador do Guarujá, onde é aluno do projeto Surfe Especial, ele participou das atividades de inauguração da Escola de Surfe Adaptado de Santos, a convite de Cisco Araña, padrinho da iniciativa desenvolvida no município vizinho.“Dadá passou por dez aulas apenas. Surfava sentado, apoiado em mim. Ganhou equilíbrio, força e confiança. Agora, já surfa em pé, sozinho”, conta Iara Stella, coordenadora da iniciativa guarujaense. “Ele mudou muito. Aumentou a autoestima, sorri e tem muita autonomia. Adora o surfe”, completa a mãe de Adailton, Andrea dos Santos.
Sem limites
A cadeira de rodas não é limite para Igor Henrique. Aos 12 anos, ele exibe as duas medalhas de ouro que conquistou em novembro, nos jogos paralímpicos escolares, no atletismo. Faz parte do projeto Fast Wheels (Rodas Rápidas), que participa de competições esportivas entre cadeirantes. Agora, “inspirado em Gabriel Medina”, está ansioso para começar asaulas de surfeadaptado, tanto que “pegou umas ondinhas” no dia da inauguração da escola. “Gosto muito. É uma sensação incrível.”
Igor é portador de mielomeningocele (má formação da medula espinhal) com hidrocefalia. Tem muita dificuldade para ficar em pé, por isso, se movimento sobre cadeira de rodas. Aluno do sétimo ano, afirma que está “focado nos estudos e nos esportes”. Seu sonho é conhecer o grupo Now United – “um dos mais famosos do mundo” –, que conta com 14 integrantes, cada um de um país diferente. “Eu gosto muito de música pop.”
Não foi perguntado ao pequeno Guilherme Mizael, de 10 anos, qual o seu gosto musical. Mas é com uma espécie de dança que ele demonstra sua ´técnica` para ficar em pé na prancha. Com Síndrome de Down, o garoto começou no surfe há dois anos e diz que não quer parar. “Sinto frio, mas é muito bom. Vou ser campeão. Pode escrever aí”, declara.
Parceria pela acessibilidade
“A gente ainda tem muito a fazer na questão da acessibilidade. Mas Santos é um ótimo exemplo de como a parceria entre o poder público e as empresas pode trazer bons resultados para a população. As empresas têm que participar, se engajar em ações que beneficiem a sociedade civil, não apenas para seus clientes ou público-alvo, mas para todos”, afirma Rogério Martins, diretor Comercial e de Marketing da Blue Med Saúde.
Ele ressalta que a parceria com a Prefeitura de Santos começou ainda na Escola de Surfe do Posto 2, com apoio ao programa que envolvia ´aspirantes` a surfista maiores de 60 anos. Foi o surfe que promoveu essa aproximação: “Um funcionário da Blue Med, ex-aluno do Cisco Araña, nos apresentou a ele e à primeira escola pública do esporte. Conhecemos o trabalho do Cisco, soubemos dos seus planos para promover mais saúde, acessibilidade, inclusão… Enfim, promover melhor qualidade de vida para as pessoas. Esse é nosso objetivo, também. É o objetivo dessa parceria”, diz Rogério Martins.
Inscrições
A primeira turma da Escola Pública de Surfe Adaptado está completa: 80 alunos iniciam as aulas este mês, em um programa que se estende até março. Mas já estão abertas as inscrições para a segunda turma, também com 80 portadores de deficiência ou dificuldades motoras (informações no Posto 2 ou pelo telefone 13 3251-9838).
O interessado (ou seu responsável legal) deve comprovar residência em Santos, apresentar atestado médico de capacidade para prática esportiva, documento de identidade, foto 3×4 e autorização, quando necessário. “Serão três programas anuais: janeiro até início de março, março até o final de maio; depois, de junho até setembro, teremos atividades para surfistas que sofreram algum tipo de trauma; e o último programa para mais 80 alunos, de outubro até dezembro”, explica Cisco Araña.
