No último domingo (24), Lucas Namur, 19 anos, estava na casa de um amigo e não resistiu ao chamado das boas ondas do final de tarde no Monduba, Guarujá (SP).
Em uma medida para conter a propagação do coronavírus, o esporte está proibido no município desde o final de março, o que vem causando diversos atritos entre Prefeitura e a comunidade do surfe.
Ao deixar a praia, Lucas foi informado de que a Guarda Municipal estaria apreendendo pranchas na região. Quando estava a caminho de casa, acabou surpreendido por uma viatura na entrada do seu prédio.
“O guarda desceu do carro e já veio direto em minha direção, apontando para mim e segurando a arma na mão”, relata Lucas. “Ele mandou eu ‘ir andando’ várias vezes, sem eu nem saber para onde estava me levando”, complementa o surfista, que trabalha como auxiliar financeiro.
As câmeras do prédio de Lucas flagraram o momento da abordagem e o vídeo repercutiu nas redes sociais, o que trouxe à tona outros casos de abuso das autoridades guarujaenses em relação aos surfistas.
“Eles não estão ali para orientar, estão para prender surfista”, conta o químico Marcelo Jarrão, que teve a prancha confiscada na Praia de Pitangueiras ao lado do filho Kailani, de 19 anos.
“Estávamos voltando para casa e um carro da GCM encostou, com o guarda com a mão na arma, como se eu fosse um ladrão. Ele veio falando ‘pode voltar pra praia já’. A partir daí começou uma confusão, eles sendo autoritários o tempo todo e gerando aglomeração. No final apareceram mais de 30 guardas, um show de horror”, descreve Jarrão.
Nestas abordagens, geralmente ao lado dos guardas estão os fiscais da Prefeitura, que são os responsáveis por aplicar a multa e confiscar a prancha. “Tivemos que pagar uma taxa de R$ 157 por cada prancha, revoltante”, conta Jarrão.
Presidente da ASG (Associação de Surf do Guarujá), Ademir Silva é uma das principais vozes que defendem a liberação do surfe no município do litoral paulista. Ele classifica as recentes atitudes da Prefeitura como “arbitrárias e autoritárias”.
A entidade já fez algumas reuniões com o prefeito Valter Suman, ouviu promessas, organizou protestos, e mais recentemente decidiu entrar na Justiça para garantir o acesso às ondas da cidade.
“Todos os surfistas da nossa cidade, filiados à ASG, me cobraram um posicionamento oficial em relação à liberação do surfe. Levantamos laudos com pneumologistas, infectologistas e outros médicos que apontaram que o surfe, se praticado de acordo com as medidas de distanciamento social, traz benefícios à saúde”, diz Ademir.
Neste sábado (30), o dirigente programou uma ação solidária que vai reunir os surfistas do município para distribuir alimentos a pessoas afetadas pela pandemia de Covid-19.
“Sempre ajudamos a Prefeitura, quando tiveram os deslizamentos, nós estávamos lá ajudando. Organizamos eventos beneficentes sem colocar um real no bolso. E é isso que estamos recebendo em troca. Não queremos nos envolver em política, somos apenas surfistas querendo praticar nosso esporte. Nada justifica essas ações truculentas”, diz Ademir.
No final do mês de abril, a ASG chegou a divulgar ao Waves uma promessa feita pela Prefeitura em liberar o esporte nos dias da semana, em horários restritos, mas até agora o acesso às ondas segue oficialmente proibido na cidade.
“Primeiro falaram que iriam liberar com horários restritos no dia 4 de maio, depois no dia 11, e infelizmente até agora nada. Eles dizem seguir ordens do Governador e do Ministério Público, mas o decreto é municipal. São eles que decidem”, finaliza Ademir, citando o município de São Sebastião, no litoral norte, como exemplo de que o surfe poderia ser praticado apenas nos dias de semana.
Local da Praia do Pernambuco, Eduardo Souza Ramos, o Xepa, surfa há mais de 50 anos no local e também teve a sua prancha confiscada recentemente. “É revoltante, depois eles nem sabem onde está a prancha. Temos problemas diários aqui como assaltos, esgoto, e as autoridades só apareceram para ameaçar o surfista”, protesta.
Gustavo Roberto Costa, Promotor de Justiça da Infância e Juventude de Guarujá, acredita que estas abordagens, principalmente as que acontecem fora da faixa de areia (como no caso de Lucas Namur), possam configurar um abuso de poder.
“Penso que isso pode sim configurar um abuso, dependendo do caso. Se o decreto proíbe a presença de pessoas na faixa de areia, não há motivo plausível para que a pessoa seja abordada em outro local. Pior ainda se a abordagem for violenta e desproporcional”, diz o promotor.
Lucas, que teve a prancha confiscada e foi multado no valor de R$ 156 ao ser abordado de forma truculenta no portão de casa, avalia se vai recorrer à Justiça. “Ainda não cheguei a uma conclusão sobre isso, é tudo muito recente e estou me orientando com alguns advogados para tomar as devidas providências”, explica.
“No momento da abordagem fiquei assustado, sem entender o que estava acontecendo. Acreditei que estariam atendendo alguma ocorrência e, de repente, o guarda desce da viatura e já vem direto na minha direção”, completa.
Procurada pela reportagem, a Prefeitura do Guarujá reforçou que em decorrência da pandemia da Covid-19, diversas atividades estão proibidas na cidade, dentre elas a prática de esportes na praia, conforme o decreto 13.568/2020.
“Cabe à Guarda Civil Municipal orientar e determinar o cumprimento das regras de posturas e, havendo insistência no descumprimento, adotar as demais medidas legais – no caso, apreensão do equipamento utilizado (prancha)”, diz a Prefeitura.
No caso específico do vídeo de Lucas, de acordo com a Prefeitura, o surfista teria descumprido a determinação e não acatado a orientação de saída imediata da praia. “Em razão da irregularidade cometida, sua prancha foi apreendida pela Fiscalização Municipal, conforme previsão legal, sendo lavrado o competente auto de apreensão”, afirma a nota.
“Apenas a análise do curto trecho de vídeo apresentado não é suficiente para confirmar eventual ocorrência de abuso ou excesso por parte do agente municipal. Também não foi registrada na Corregedoria da Guarda Civil Municipal nenhuma denúncia acerca do episódio apresentado pela reportagem”, finaliza a Prefeitura.
Depois da nota enviada pela Prefeitura, Lucas entrou novamente em contato com a reportagem do Waves e pediu direito de resposta.
“Como já informado e publicado pelo site Waves, surfei tranquilamente durante uma hora, na companhia de um amigo, e, em nenhum momento fomos chamados a atenção para sair da água. Depois desse tempo, saímos do mar, pegamos as bicicletas e fomos para a casa do meu amigo com a prancha embaixo do braço, seguindo tranquilamente pela orla da praia”, afirma Lucas.
“Ficamos ainda um tempo conversando na casa dele e fui embora. No caminho, pela rua Mário Ribeiro a pé, encontrei um outro amigo na padaria e conversamos mais um pouco. Foi então que me avisaram que estavam abordando e apreendendo as pranchas dos surfistas, mesmo fora da orla da praia. Então, segui em direção ao meu prédio, que fica próxima ao local”, relata o surfista.
“Na porta de minha casa, a viatura da GCM se aproximou em alta velocidade já com GCM Ribeiro saindo do carro, com a mão na arma e vindo diretamente em minha direção e já ordenando que saísse da porta do meu prédio. Após me levar para longe da portaria, mandou que fosse andando e nem me informou para onde estávamos indo. Na esquina da rua Quintino Bocaiuva, encontrei o meu pai e foi então que o GCM Ribeiro explicou para onde estávamos indo para aguardar os procedimentos. Depois de uma hora, o fiscal chega, aplica a multa a apreende a prancha”, explica.
“Quanto a alegação do curto tempo de vídeo, é por que GCM viu que havia câmera no local e me levou para longe delas, como pode ser percebido pelas imagens. Além das imagens das câmeras, temos testemunhas que presenciaram toda a ocorrência. Essa é a realidade dos fatos, já que a verdade não faz parte do cotidiano da prefeitura do Sr Valter Suman. Obrigado”, finaliza Lucas.
Matéria atualizada na sexta-feira (29), às 7:28 horas.