Leitura de Onda

Uma grande história

Colunista Tulio Brandão comenta volta por cima de Gabriel Medina, literalmente, durante ISA Games em Porto Rico, bem como enaltece performance das brasileiras olímpicas.

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Gabriel Medina domina espaço aéreo para passar por cima de todos os adversários em Porto Rico.

Foi um daqueles triunfos inesquecíveis, uma saga a ser contada com gosto em mesas de bar ao redor do mundo, uma vitória que tirou todo mundo do lugar.

O título “Gabriel Medina vence o ISA Games e vai aos Jogos de Paris” não consegue capturar, em qualquer dimensão, o tamanho da odisseia do mais dominante surfista dos últimos 10 anos rumo ao sonho de uma segunda vaga olímpica.

A grande história começa em agosto do ano passado em Teahupoo, arena em que será realizado, daqui a alguns meses, os Jogos Olímpicos de Paris.

Naquela hoje distante etapa do Taiti, vimos um Gabriel Medina em sua versão plena, com o conhecido brilho (que insistia em ser intermitente em 2023).

Foi uma competição especialmente destinada a amassar havaianos: na fase 1, ganhou de Baron Mamiya e Seth Moniz; voltou a vencê-los nas fases seguintes; e, de lambuja, ainda deixou em combinação, nas quartas, John John Florence.

(O mesmo JJ que declarou, dias atrás, querer vencer mais títulos que o brasileiro.)

A controversa final contra Jack Robinson foi um desses desvios inesperados da história. Os juízes escolheram o australiano. Pouca gente contava com isso.

Foi um tombo duro, daqueles que não se espera que alguém se levante.

Por seis décimos, Gabriel estava fora das finais de Trestles. Por seis décimos, o sonho olímpico parecia acabado – a não ser que se operasse o milagre de uma terceira vaga, a ser conquistada por toda a equipe brasileira, num então pouco palpável ISA Games.

Para um país que precisava de um time em forma, a temporada de 2024 começou com duas baixas importantes: de João Chianca, por lesão, e do bicampeão mundial Filipe Toledo, pela opção do sabático.

O caminho ficou ainda mais tortuoso para os brasileiros depois das duas primeiras etapas do WCT no ano. Foi a pior perna havaiana desta geração, com eliminações em série e um isolado quinto lugar de Italo Ferreira como melhor resultado.

Todos os indicadores apontavam para uma óbvia decadência da tempestade brasileira – incluindo aí a de Gabriel, que fez duas de suas piores baterias da vida em Pipeline e Sunset. Adversários esfregavam as mãos pela nova oportunidade, o circo estava veladamente aliviado com o possível fim da dominância de apenas um país.

Mas chegara a hora de tentar o milagre da vaga. O time Brasil, com nossos melhores surfistas disponíveis nas duas categorias, aterrissou em Arecibo, Porto Rico, para a emocionante maratona do ISA Games, repleta de vencedores, de perdedores e de grandes histórias – e também uma alternativa mais democrática ao formato do WCT.

Adiante, havia uma competição interminável, com 144 surfistas apenas no masculino, oito fases a escalar (isso se você não caísse na infinita chave da repescagem) e a necessidade de contar com outros dois surfistas que avançassem firmes competição adentro para disputar o título por equipes.

Yago Dora tem boa performance em Porto Rico mas perde a vaga no dia decisivo.

Dentro d’água, todos lutaram. Yago Dora, que substituiu João e em algum momento deu sinais de que poderia ser o favorito à terceira vaga, atropelou três fases em apenas um dia com um renovado cardápio de manobras aéreas. Filipe Toledo deixou seu sabático de lado e, mesmo notadamente fora de ritmo, acelerou por fases importantes em defesa de seus amigos, velhos adversários de WCT.

Tainá Hinckel deu uma aula de foco para buscar a segunda vaga olímpica feminina. Luana resistiu algumas fases num mar distante de sua especialidade, mas Tatiana Weston-Webb estava a seu lado. Mesmo já classificada, com o vice-campeonato na prova, ela tomou na unha a terceira vaga olímpica do feminino para Luana e foi fundamental para que o país também vencesse no geral.

Por um momento, antes do ISA, eu achei que reunir tantos interesses distintos numa mesma equipe seria impossível. Pode parecer clichê (e talvez seja), mas, talvez, uma resposta para o que aconteceu no Taiti é a especial capacidade que o brasileiro tem de ser solidário, empático, próximo do outro. A gente abraça antes de apertar a mão.

(Aqui vale uma menção a todos os integrantes do Time Brasil que souberam construir com enorme habilidade essa intrincada possibilidade de união de um time com tantos interesses distintos.)

Tatiana Weston-Webb tem resultado brilhante em Porto Rico e coloca Luana Silva nos Jogos Olímpicos em Teahupoo.

Gabriel, que já dedicara dois títulos mundiais aos pais e um à ex-mulher, agora se via novamente energizado, desta vez por um abraço coletivo, de amigos ou mesmo de simples compatriotas, em busca do que parecia ser impossível, especialmente no último dia de evento.

Pareceu mágica, mas era apenas uma enorme carga concentrada para um fim, como já havia acontecido antes. O campeão se tornou imbatível, e os deuses do destino trataram de providenciar o resto – o que não é pouco: na final, deixar o excelente surfista de borda marroquino Ranzi Boukhiam em segundo lugar e as duas ameaças francesas, Joan Duru e Kauli Vaast nas últimas duas posições.

O Brasil varreu o ISA Games no masculino, no feminino, no geral. O time que chegou ao evento sai em outra posição, com confiança na mala. A velha tempestade, antes questionada, ganha novo ‘momentum’ às vésperas da volta ao WCT, em Portugal.

E Gabriel? Bem, agora, com a vaga olímpica no bolso e carregado de energia por essa grande história, vai se dedicar à temporada de 2024. Todos, inclusive os adversários, sabem do que ele é capaz. A ver.