Surfe e medicina

O que faço com o limão?

Guarde para a caipirinha! Dr. Guilherme Vieira Lima explica por que tratar ferimentos de coral com limão não passa de uma lenda.

0
Filipe Toledo machuca as costas ao chocar-se contra a bancada de coral, durante os treinos para o Taiti Pro.Arquivo Pessoal
Filipe Toledo machuca as costas ao chocar-se contra a bancada de coral, durante os treinos para o Taiti Pro.

Passada a euforia da grande vitória de Gabriel Medina e da manutenção da liderança de Filipe Toledo no ranking mundial, vamos relembrar um fato que ocorreu em Teahupoo pouco antes de o evento começar.

Além de trazer a lycra amarela na bagagem, Filipinho trouxe algumas cicatrizes provocadas por um acidente nos corais taitianos. Após rodar com o lip, ele caiu direto na bancada, causando diversas escoriações pelo corpo.

Como manda a “tradição”, foi utilizado limão para o tratamento da lesão. Como médico, procuro sempre utilizar embasamento científico nas minhas informações e, após extensa pesquisa, não achei nada na literatura médica sobre sua utilização como um antisséptico natural.

Muito pelo contrário, o suco dessa e de muitas outras frutas podem causar lesões graves na pele como as fitofotodermatites.

As fitofotodermatites são lesões causadas por uma substância chamada furocumarina, que está presente no suco e na casca do limão. Essa substância penetra na pele e potencializa os efeitos do sol. O resultado instantâneo dessa reação é a ardência e a vermelhidão no local, sensação equivocada de antissepsia que os surfistas sentem quando aplicam o suco na escoriação.

Exemplo de fitofotodermatite causada por limão.

Essa substância não sai somente com a lavagem com água e se a quantidade do suco for grande, a substância pode alcançar as camadas mais profundas da pele e causar lesões mais sérias necessitando de avaliação dermatológica. A longo prazo produzem manchas tipo queimadura e que muitas vezes demoram anos para saírem.

O limão não é um instrumento estéril para ser utilizado na limpeza do curativo, por isso, esfregar sua casca pode contaminar ainda mais a lesão. Sendo assim, guarde o limão para a caipirinha!

O que devemos fazer numa situação como essa?

1 – Lavar inicialmente com água do mar (preferência gelada) para remover os possíveis restos de corais, sem o “disparo” dos nematocistos liberadores de toxinas presentes em alguns animais colonizadores das bancadas.

2 – Lavar exaustivamente com água doce (preferência potável) e sabonete neutro antisséptico auxiliado por esponja para ação mecânica na região e assim remover a maior quantidade de agente infecciosos como bactérias.

3 – Aplicação de substancia antisséptica (povedine / clorexedine) nas bordas da lesão para evitar nova infecção da ferida. Aplicação de antissépticos alcoólicos diretamente na lesão produz uma dor insuportável e desnecessária para o paciente caso o item dois seja bem feito.

Corais são um ecossistema de imensa diversidade de animais e vegetais importantes para o equilíbrio ambiental.

4 – Curativo estéril com solução oleosa tipo Dersani® para manter o substrato de cicatrização e não lesionar a pele no momento da troca do curativo.

5 – Antibiótico via oral de amplo espectro de forma profilática após a lesão (favor consultar um médico para auxiliá-lo no KIT antibiótico do surfe, para cada situação exige uma posologia específica).

6– Inspeção da ferida e troca do curativo diariamente, observar sinais infecciosos como aumento da temperatura local, vermelhidão em progressão, saída de secreção purulenta, edema e aumento da dor. Caso sinais progressivos, fim da trip, procure o hospital mais próximo pois o caso é grave!

7 – As lesões profundas que necessitem de sutura veja na coluna de julho:

8 – Não expor a região ao sol, afim de evitar a queimadura da pele desprotegida e colaborar para uma melhor cicatrização da região.

A bancada de coral não é pedra! É um ecossistema de imensa diversidade de animais e vegetais muito importante para o equilíbrio ambiental. Tenha cuidado por onde pisa ao entrar e sair do mar. Lembre-se de quem é o intruso.

Quando o surfista colide e se machuca no coral, pode ter certeza que ele também é agente agressor do coral.

Muitas ondas só são perfeitas exatamente pela presença da bancada, por isso, conhecer o local onde se está surfando é primordial para evitar traumas e para preservação do ambiente marinho.

Surfe só é saudável quando o mar também está com saúde! Respeite o mar para ser respeitado por ele.

Nota

– Lembrando da Conferência Mundial de Medicina do Surfe (#WCSM18) que acontecerá entre os dias 24 e 28 de setembro em Newquay, Reino Unido, onde esse e diversos outros temas sobre surfe e saúde serão abordados. Vale a pena dar uma checada na programação.

“Respeitamos a liberdade editorial de todos os nossos colunistas. As ideias expressadas no texto acima nem sempre refletem a opinião do site Waves”.