Filipe Toledo salvou este texto. Não fosse a pequena mudança de roteiro imposta por sua performance, na final do Surf Ranch realizada nesse domingo, seria justo repetir a coluna de 2019, quase como um feitiço do tempo.
Só que desta vez, mais afinado com o trem de Lemoore, o ubatubense entrou nos trilhos: com um surfe sem erros, quebrou a hegemonia de Gabriel Medina, ficou em posição muito confortável por uma vaga em Trestles, ampliou seu incrível aproveitamento em finais – agora com 10 conquistas – e, por último mas não menos importante, antecipou o que pode fazer em San Clemente caso esteja na decisão.
Com a manutenção de dois descartes mesmo depois do anúncio do cancelamento da etapa brasileira, a temporada fica reduzida aos pontos de seis etapas. Filipe, portanto, com duas vitórias, um terceiro e um nono, já está na beira da água de Trestles.
Lemoore serviu também para reforçar o favoritismo do ubatubense na divertida e mais fácil onda de San Clemente. Por tabela, talvez tenha dado cores mais claras ao dilema que a WSL terá que enfrentar com a infeliz escolha de dar o título da temporada ao vencedor de uma disputa isolada em Trestles.
É uma pedra cantada: Gabriel Medina, vice na etapa, garantiu vaga na decisão com mais de 13 mil pontos de diferença para o segundo colocado, Italo Ferreira. E, com mais apenas duas etapas de seletiva, sendo uma delas no Taiti, onde ele é dominante, a previsão é de manutenção de uma distância abissal para os adversários.
Será constrangedor para o surfe, diante dessa vantagem do líder, ver outro atleta conquistar o título mundial num dia ordinário de Trestles. E isso é possível.
Filipe nada tem a ver com as decisões da entidade. Fez seu dever de casa mais uma vez de modo magistral, derrotando o líder do circuito mundial na piscina em que era o rei, e, para isso, usou um repertório ampliado de manobras.
Destaque, na esquerda, para o aéreo de reverse de backside no meio da onda; e, na direita, para os alongados arcos com transições sempre limpas para a manobra seguinte, além de um alley-oop de altura e aterrissagem inéditos na piscina. Fora as novidades, ele repetiu o que já tinha apresentado em outros anos, surfando com velocidade, explosão, leveza e linhas harmoniosas.
A vitória em Lemoore posiciona novamente Filipe numa temporada de sístoles e diástoles, com dois picos agudos de vitórias e dois frágeis décimos-sétimos. Mas, a favor do ubatubense que mora em San Clemente, há a decisão em casa e o fato de que inconstância de bons resultados nada valerá se, na decisão, ele for bem.
Lemoore confirma também a capacidade competitiva de Filipe, que não se intimidou mesmo diante de um adversário hegemônico na piscina numa temporada brilhante. Ele buscou uma vitória que muitos imaginavam ser improvável, diante da evidente capacidade competitiva e frieza sob pressão de Gabriel. E, agora, no jogo mental, também se posiciona com mais conforto para buscar o primeiro título mundial.
Um aéreo muda a história
Gabriel mais uma vez esteve brilhante na piscina. Talvez não tão avassalador quanto em edições anteriores – ou talvez, ainda, submetido a critérios de julgamento mais duros, como disse, em desabafo após a final. De todo modo, cumpriu o que se esperava: um surfe potente, no limite da possibilidade da onda, quase sempre preciso.
Assimilou bem a primeira grande pressão que lhe foi imposta para cruzar o limite da semifinal, com a necessidade de uma nota excelente na esquerda e na direita. Com a performance, assumiu a ponta da tabela pela primeira vez no evento, no momento mais importante da prova.
Na primeira volta da final, depois de um início irregular de Filipe, o líder do ranking ganhou vantagem psicológica ao abrir com uma direita forte, que poderia ter beirado os 9 pontos, mas ficou abaixo disso na avaliação dos juízes. Ainda assim, tinha a esquerda à disposição para ampliar bastante a pressão sobre Filipe.
Gabriel tinha feito uma onda excelente minutos antes, e tudo indicava que reproduziria mais uma vez sua rotina vencedora. Mas, provavelmente pressionado pelo novo teto de suas notas, modificou a linha, partindo para um aéreo extenso na primeira parte da esquerda, e caiu na aterrissagem. Perdeu ali.
O jogo mudou para Filipe. De pressionado, ele passou a ser o surfista que pressionaria. Nas duas ondas seguintes, na série final, Filipe foi brilhante. Acertou tudo, surfou com elegância, sem medo de errar e jogou a bomba no colo do Gabriel. O rival de Maresias entrou na água e bingo: errou a direita e a esquerda.
Vitória merecida de Filipe, para a alegria do pai, Ricardinho Toledo, que estava com toda a família na piscina em pleno dia dos pais nos Estados Unidos.
Se há algo a se comemorar na piscina, é a aproximação rara do surfe com um modelo de esporte mais calculado, em que o surfista precisa, o tempo todo, medir riscos e oportunidades, além de saber conquistar pontos sob pressão. Surfe-xadrez.
Igarashi e Colapinto aceleram
Kanoa Igarashi e Griffin Colapinto, ambos em terceiro, fizeram bonito em Lemoore. São dois surfistas modernos e velozes, com rotina bem variada de manobras, e capazes de surpreender com truques aéreos. Posicionam-se, hoje, na liderança do segundo pelotão entre os surfistas da elite e disputam, etapa a etapa, um lugar em Trestles. Hoje, o japonês está em sexto e o americano, em quinto. O quarto, Morgan Cibilic, que surpreendeu no início do ano, deve sofrer para se manter no grupo dos cinco que decidirão em San Clemente. Tem uma turma boa no retrovisor dele.
A aula magna de Dora
Filipe e Gabriel ainda são mais eficientes no overall, mas, de frente para a onda, nenhum surfista alcançou o refinamento de Yago Dora no Surf Ranch. As manobras convencionais, as transições limpas, o ritmo preciso e, claro, a explosão de aéreos rotacionais em pelo menos três partes da esquerda fizeram dele um modelo a ser seguido pelo mundo. Dora encontrou o tempo fácil daquela onda tão difícil.
Ainda assim, perdeu a chance de avançar, mesmo com a melhor nota da semifinal e de todo o evento, um impressionante 9,73. Para espetar um importante terceiro lugar, com pontos que podem lhe fazer falta no fim do ano, faltou calma na direita decisiva. Se pelo menos ele tivesse finalizado a onda sem erros, deixaria a batata quente nas mãos dos juízes, porque precisava de apenas 6,77 para chegar ao terceiro posto.
De todo modo, sai de Lemoore com a cabeça erguida e respeitado pelos pares. E claro, está no jogo, perto de Igarashi e Colapinto, em busca de uma vaga no Top 5.
Viva, Adriano; viva o Brasil
Quem acompanha o surfe aqui em Pindorama, se não for ruim da cabeça ou doente do pé, tem orgulho de ser do conterrâneo de Adriano de Souza. O campeão de 2015 merecerá uma coluna especial pela aposentadoria, mas, em Lemoore, recebeu uma linda homenagem dos brasileiros – todos com o seu número e seu nome nas costas.
Na piscina, demonstrou mais uma vez que a aposentadoria é uma opção, não uma necessidade: com botton-turns limpos e ataques contundentes, chegou à semifinal e acabou com a quinta melhor média da semifinal. Ainda está na ponta dos cascos.
Adriano é o cara que deu início, lá atrás, a um movimento de afirmação brasileira que nos transformou em protagonistas absolutos da elite do esporte, com quatro títulos nas últimas seis temporadas, conquistados por ele, por Gabriel e por Italo.
O domínio segue intocado: o Surf Ranch é a quinta etapa consecutiva da temporada com vitória de um surfista brasileiro, que marcou a volta de brasileiros nas três primeiras posições. Um provável recorde, doce para brasileiros e provavelmente amargo para anglo-saxões saudosos dos tempos de domínio na WSL.
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