Leitura de Onda

O novo Gabriel é ainda melhor

Tulio Brandão explica o papel da felicidade na avassaladora vitória de Gabriel Medina em North Narrabeen.

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A serenidade dentro d’água e as respostas mais relaxadas compõem a realidade deste tal novo Gabriel.

“Eu quero surfar mais.
Acho que estava pensando muito em estratégias.
Me sinto bem em poder surfar mais.”

A declaração de Gabriel Medina, dada na entrevista oficial depois da fabulosa recuperação contra Morgan Cibilic, é a síntese mais precisa do evento de Narrabeen e, claro, de seu incontestável vencedor, o feliz Gabriel Medina.

O padrasto Charles jamais poderá ser esquecido. Forjou, a fórceps, um surfista praticamente invencível, usando como matéria-prima um menino talentoso de Maresias que vivia numa família em circunstâncias econômicas desfavoráveis. Usou os recursos de que dispunha – disciplina, determinação e um foco obsessivo – para romper, ao lado do filho, o muro alto que separava o Brasil de seu primeiro título mundial. Seguiu ao lado dele por anos, e foi decisivo também no bi.

Mas os filhos ganham asas – esta aí a grande recompensa da paternidade. E voam, muitas vezes ao lado de novas companhias – no caso, da mulher Yasmin Brunet. Sem a tutoria da família, filhos costumam escolher novos caminhos, muitas vezes mais inteligentes. Filhos são a nossa evolução, nossa próxima fase civilizatória.

Foi o que Gabriel fez. Abandonou corajosamente a cultura obsessivamente competitiva em que foi criado (e que lhe rendeu títulos, sem dúvida), chamou um técnico novo, Andy King, com quem tem uma troca de informações proveitosa e parece ter resolvido se reconstruir, de um jeito mais orgânico, mais leve e mais feliz.

Gabriel Medina isola-se na liderança do Championship Tour após a vitória na etapa australiana de North Narrabeen.

A serenidade dentro d’água, marcada pela desistência na disputa da primeira prioridade em baterias e pela abordagem mais desapegada às ondas, é só um dos sintomas. A disposição de atender aos fãs, as respostas relaxadas em entrevistas, as resenhas e cervejas com amigos do Tour e o amor pela mulher, Yasmin, compõem a realidade deste tal novo Gabriel.

Sai o circunspecto “eleito de Deus”, entra um surfista maduro, pleno, absolutamente consciente de suas possibilidades. Ainda religioso, claro, mas aparentemente disposto a viver a felicidade sem expectativa descrita pelo filósofo André Comte-Sponville:

“Como eu seria feliz se fosse feliz!”. Esta fórmula de Woody Allen talvez diga o essencial: estamos separados da felicidade pela própria esperança que a persegue. A sabedoria, ao contrário, seria viver de verdade, em vez de esperar viver. (…). Só teremos felicidade à proporção da desesperança que seremos capazes de atravessar. A sabedoria é isso mesmo: a felicidade, desesperadamente.

Demorei para entrar no evento por uma razão: é a felicidade o que explica todos os contornos da vitória de Gabriel em Narrabeen e a liderança isolada no ranking mundial, ou melhor, na corrida por uma vaga para a decisão do circuito, em Trestles.

Caio Ibelli e Gabriel Medina logo após a bateria das oitavas de final.

O caminho até o título

A história é contada de trás para frente. Começo pela final, contra o americano Conner Coffin, quando Gabriel reuniu todos os atributos que mostrou, em pílulas, durante o evento. Foi avassalador. A 21 minutos do fim, estava tudo resolvido – ele já havia surfado a segunda nota acima de nove pontos. Todos sabiam que seria impossível, naquele mar, um surfista sem manobras aéreas igualar as notas do brasileiro.

Afinal, o surfe não tem handicap, que no golfe, por exemplo, permite a jogadores de níveis distintos competirem entre si através de uma espécie de marcador que compensa diferenças técnicas.

Coffin é um bom surfista de linha, mas esteve longe da lista dos melhores do evento. Perdeu a primeira fase. Na repescagem, passou raspando em segundo, derrotado por Alex Ribeiro. No round de 32, contra o australiano Wade Carmichael, que é uma versão menos penteada e mais divertida do americano, quase perdeu novamente.

Arrastou-se, portanto, até a bateria contra Italo, em que passou de nove pontos no somatório pela primeira vez na prova. Fez um medíocre 11,47, o que seria insuficiente numa comparação justa entre as ondas dos dois surfistas, mas não para os juízes da prova, que tinham outros planos – trato disso mais adiante. Dali, ganhou confiança e fez duas boas baterias, contra Kanoa Igarashi e Griffin Colapinto, até a final.

O americano Colapinto, aliás, seria um finalista mais interessante. Embora também tenha vencido uma bateria duvidosa, contra Adriano de Souza, surfou mais que o conterrâneo – eliminando, no caminho, um Yago Dora em grande fase, nas quartas.

Gabriel, por outro lado, caminhou em modo de cruzeiro até as oitavas de final, quando começou a produzir notas excelentes. Assombrou contra Caio Ibelli, Morgan Cibilic e, na final, contra Coffin, quando atingiu seu pico de desempenho.

Na semifinal, surfou bem contra o sempre “encardido” Frederico Morais, mas precisou de uma colher de sopa da velha estratégia dos tempos de Charles, ao usar a prioridade para marcar a remada do português de perto.

Estreante na elite mundial, Morgan Cibilic é a grande surpresa do ano.

Cibilic vai brigar pelo top 5

Morgan Cibilic é a maior surpresa do ano, de longe. O estreante, de 21 anos, entrou na 11ª e penúltima vaga da divisão de acesso de 2019, sem vencer qualquer prova do QS. Mas a história está escondida na evolução do garoto: no ano anterior, em 2018, mesmo competindo em toda a temporada, o australiano ficou fora da lista dos 100 primeiros do ranking da segunda divisão. E, em 2021, no primeiro ano da elite, já venceu o bicampeão do mundo John John Florence duas vezes.

Nas três etapas disputadas (Pipe, Newcastle e Narrabeen), só foi derrotado para o atual líder do ranking, Gabriel. Mas Cibilic não parece ter se afetado pelo desafio de ter o seed baixo (ao ocupar a penúltima vaga do acesso) e, por isso, sempre ser obrigado a cruzar com os melhores do mundo pelo caminho.

Nas duas etapas já realizadas na Austrália, surfou bem, mesmo contra o brasileiro. Só foi derrotado porque, em ambas as ocasiões, seu oponente tirou da cartola uma daquelas mágicas raras, que só os juízes não viram notas máximas.

Seu surfe é leve, fluído e vertical, embora ainda tenha pontas soltas. Mas, a julgar pelos resultados recentes, não é apenas sobre a técnica de Cibilic, mas também sobre sua capacidade competitiva, força mental e concentração para confrontar campeões.

Não será surpresa vê-lo dentro d’água em Trestles. Hoje, já ocupa a sexta posição.

Italo Ferreira saiu derrotado na bateria mais polêmica do evento: julgamento deixou a desejar em North Narrabeen.

Italo e o banheiro químico

“Ahhhhhhhhhhhh! Eu consegui!”

Italo tinha acabado de vencer o tricampeão mundial Mick Fanning em sua onda favorita, a deitada Bells. Era a sua primeira vitória no circuito mundial, seja na elite ou na divisão de acesso. Com uma alegria incontida, entrou num banheiro químico do evento e explodiu, sem saber que tudo era registrado.

O videojornalista People on Tour fez um dos vídeos de bastidores mais sublimes da história recente da WSL, e o surfista expressava ali, pela primeira vez ao mundo, a felicidade (olhe ela aí) que serviria como uma importante usina de suas vitórias.

Em 2021, com um título mundial e sete vitórias de etapas no bolso, reconhecido pelo poder de seu surfe e pela infinita capacidade competitiva, Italo toma a primeira grande banda – não da onda, mas do painel de juízes do WCT.

Não será a última, é preciso dizer.

A discussão poderia girar em torno da aterrissagem do full rotation, ou de quanto tempo ele ficou em pé na onda até ser derrubado pela espuma.

O debate poderia se estender pelo critério torto de julgamento utilizado na esquerda que foi desfigurada por uma sublime rasgada com bordas enterradas do brasileiro. Ou poderia seguir pela simples, mas notável diferença de performance entre os dois surfistas ao longo de toda a bateria.

Mas não. Esgotados os argumentos, não se trata disso. Italo perdeu porque foi julgado, como diz um amigo, com o sarrafo alto de um líder que parecia imparável. Italo perdeu porque tinha um alvo pintado em suas costas, e muita gente com a mira apontada para ele. O showman estava irremediavelmente obrigado a dar espetáculo em todas as baterias – se vacilasse, se brilhasse um pouco menos, estaria fadado a ser derrotado.

Se é justo? Claro que não, mas nada é mais real. Juízes, por mais que se esforcem em busca da precisão, não são sempre máquinas de produzir resultados corretos. E, neutralidade, como se diz no jornalismo, é como uma cenoura na frente do burro: você jamais a alcançará, mas só sairá do lugar se passar a vida tentando comê-la.

A Italo, restou fazer a boa política, depois de um justificado acesso de fúria, que lhe custou uma boa Timmy Patterson: no dia seguinte, apaziguou a relação para seguir adiante, consciente de que no caminho, não apenas as espumas lhe darão bandas.

No mais, é jamais perder de vista o Italo daquele banheiro químico de Bells.

Antes do fim, vale dizer que o julgamento em Narrabeen foi especialmente infeliz, não apenas com Italo. Houve uma sucessão de erros, contra surfistas de todas as nacionalidades, além de critérios confusos e randômicos.

Deivid Silva não quebrou sua prancha

Uma das vítimas do julgamento nas duas etapas australianas foi o bom Deivid Silva. Em Newcastle, perdeu justamente para Italo nas quartas, numa bateria que poderia tranquilamente ter ido para o goofy do Guarujá.

Em Narrabeen, quem o derrotou com méritos duvidosos foi Kanoa Igarashi. O nipo-americano erra no surfe de borda e abusa de manobras com o fundo da prancha, mas a WSL parece ignorar esta lacuna. Pontua-o como se seu surfe não tivesse falhas – não sei se por erro técnico ou pela importância de ter seu protagonismo acentuado no ano em que os Jogos Olímpicos serão realizados no Japão.

Quinto colocado em Sidney, Yago Dora ainda tem espaço para evoluir na elite mundial.

Yago, Miguel e Filipe

Dois surfistas dignos de nota: Yago Dora e Miguel Pupo. Ambos estão tecnicamente em grande forma, são reconhecidos por suas linhas finas e com transições limpas, mas perderam baterias que poderiam ganhar, em fases distintas.

No round de 32, contra um pouco inspirado John John Florence, Miguel teve a vitória nas mãos, ao remar com prioridade numa das melhores ondas do dia. Surfou-a com uma linha sofisticada, irrepreensível, mas com certa falta de contundência e pressão. Foi punido (mais uma vez) com uma nota insuficiente, embora seu surfe seja uma unanimidade inclusive entre os comentaristas estrangeiros.

A derrota foi tão sofrida que, depois que soou a sirene, permaneceu na água, com a lycra de competição, no mar, por horas, em reflexão.

Já Yago foi até as quartas de final, o que ele poderia considerar um bom resultado. Sim, um quinto lugar pode ser útil a uma temporada tão distinta, mas ainda está bem abaixo das possibilidades do surfista.

Há uma certeza: ambos podem brigar por pódios e vitórias, na parte de cima da tabela.

Filipe Toledo, que já acumulou muitos pódios e vitórias, é um dos únicos do mundo que poderia ter rivalizado com Gabriel pelo título da etapa. Perdeu para Federico, nas oitavas, num mar absolutamente afeito às suas melhores manobras.

Seria incompreensível vê-lo fora de Trestles. Neste momento, está em oitavo, fora da lista dos cinco contemplados com o convite para a decisão. É hora de trabalhar.

Sobre Margaret River

Na próxima etapa, John John Florence terá a sua grande chance de dizer ao mundo o que foi fazer na Austrália. Também vale atenção ao surfe de Jack Robinson, a partir deste ano um dileto integrante da elite, na onda de The Box. É bom mesmo os rivais acelerarem, porque Gabriel e Italo já estão fazendo a primeira curva.