Natália Regina

Representatividade transforma

Waves bate um papo exclusivo com Natália Regina, surfista local da praia do Sapê em Ubatuba (SP) e conta sua história e sonhos.

0

Natalia Regina, longboarder de 26 anos, local da praia do Sapê, em Ubatuba (SP), veio de uma periferia da cidade de São José dos Campos, interior paulista e desde 2020, sua vida mudou, se tornou surfista e passou a lutar e incentivar a representatividade dentro do mar. Waves conversa com a longboarder, que conta sua história e seus propósitos como surfista negra.

Natália nasce em São José dos Campos e cresce no Campo dos Alemães (bairro periférico da região sul da cidade), é filha de Katia Regina, que trabalha como empregada doméstica, e de Antônio Santana, pedreiro. Tem muitos irmãos, mas seus irmãos de sangue e criação são Miguel de 13 anos e Bianca de 21 anos, que é mãe de Ravi e Arthur.

Nunca teve uma vida fácil, era um grande esforço para viver do mínimo.

Existe um problema com alcoolismo e drogas muito presente em sua família, entre seus pais, tios, irmãos e alguns primos. E Naty, como é conhecida, sempre lutou muito para deixar seus irmãos longe deste cenário e esse é seu maior medo até hoje, que eles acabem se entregando. E por esses motivos, entrou em um período muito forte de depressão. Depois desse momento, quis mudar sua vida, mudou de emprego e logo em seguida mudou de cidade. Sentiu bastante essa mudança, mas sabia que tinha algo melhor para ela. Porém, não sabia o que era. A única coisa que tinha certeza é que lá não era seu lugar.

Depois que se mudou para Ubatuba (SP), tudo ficou mais claro. Quando conheceu o surfe, sentia dentro de si, um chamado como se isso mostrasse a ela onde é o seu lugar. Mesmo com todas as barreiras interiores e preconceitos, sabia que era dentro do mar que queria estar, então focou nisso.

Hoje trabalha em uma pousada de frente para a praia do Sapê, em Ubatuba (SP), onde conheceu muitas pessoas incríveis, que jamais imaginou que poderia conhecer, pessoas brancas, formadas e algumas de classe alta, mas que tinham a mesma vontade que ela de surfar.

Para sua família, essa mudança toda não só de lugar, mas também de vida, é algo tão surreal que eles não entendem, mas admiram.

Para ela, o mais importante nisso tudo, além da qualidade de vida que tem hoje, é poder inspirar e impulsionar outras pessoas, talvez pessoas que estão no mesmo lugar de onde veio. Não necessariamente no surfe, mas para qualquer outra área ou lugar.

Quando decidiu morar na praia e se tornar surfista, percebeu que estava em outro lugar, com outras pessoas dentro do mar, pegando onda. Nesse momento, caiu sua ficha, que ela pode tudo que quiser, que nada é impossível e só depende de si mesma. Como ela mesma revela: “Muitas vezes em dias clássicos, de mar perfeito, me vejo me beliscando para ver se aquilo é real mesmo e quando vejo que de fato estou vivendo isso, é de arrepiar o corpo. Já me emocionei muito sozinha no mar e poucas pessoas vão entender a felicidade real das minhas lágrimas. Hoje tenho um sonho, mas posso dizer que ele não é só para mim”.

Em entrevista exclusiva ao Waves, Natália Regina conta sua história, seus sonhos e como o surfe transformou sua vida e ao mesmo tempo, como a representatividade no mar faz diferença na vida dela e de outras pessoas.

Como foi seu primeiro contato com o surfe?

Minha história tomou um novo rumo em junho de 2020, eu tinha 22 anos.

Antes eu não conhecia o surfe, só nos filmes da Sessão da Tarde com as surfistas magras e loiras.

Quando me mudei para Ubatuba, através de um antigo relacionamento e uma eterna amizade, comecei a ver o que é o surfe mesmo de fato, o que é uma onda no mar. E com isso, tive a oportunidade de ver uma prancha de perto e subir nela. Fui empurrada nas espuminhas e na primeira já consegui ficar de pé, jamais vou esquecer desse momento.

Sempre amei a praia, mesmo não tendo condição financeira para conseguir ir sempre. Mas toda vez que acontecia um milagre de ir, eu virava um peixe.

O mar sempre foi uma grande paixão também, então iniciar no surfe foi uma das coisas mais divertidas e prazerosas que eu tive a oportunidade de experimentar e estou experimentando até hoje.

Em quais picos costuma surfar?

Hoje a minha rotina respira surfe. No momento trabalho em uma pousada de frente para o mar e no pico de onda, na praia do Sapê em Ubatuba (SP). Inclusive deixo minha prancha guardada lá.

Trabalho no período da tarde, então surfo todas as manhãs e dependendo do mar, no final da tarde também, sempre estou lá. Sapê virou minha casa, eu amo aquele lugar.

Na sua opinião, qual o maior desafio em ser uma mulher surfista?

No Sapê têm um grupo grande de mulheres surfistas, e muitas surfam de longboard. É engraçado, porque acredito que muitas, quase todas, tem algum momento chato na água com um pezinho de machismo, uns até o corpo inteiro. E o pior é o quanto alguns homens acham defeitos no que estamos fazendo. Ouvi muitos comentários como: você rema errado, você não faz curva direito, além olhares de indignação quando a gente pega uma onda boa e muitas vezes jogam a prancha na nossa frente na hora do drope nos impedindo de pegar a onda.

Mas diante de tudo isso, eu continuo insistindo diariamente e só evoluo.

Hoje me posiciono mais, tenho mais confiança e sei do meu espaço. Depois que eu aprendi o que é isso, confesso que é raro acontecer situações como antes.

O que acha sobre representatividade dentro do mar?

Sou uma mulher negra com muitas qualidades, porém muitos traumas e hoje sou surfista.

Tive que lidar com muitos bloqueios para continuar querendo surfar e um deles era o sentimento de não pertencimento. Eu tinha vergonha de surfar, de chegar com uma prancha na praia, muitas vezes eu já senti pânico, do corpo todo tremer por dentro e de ouvir só zumbidos até chegar na água. Mas eu queria muito.

Comecei a procurar mulheres como eu para me inspirar e são minhas referências até hoje.

Logo no começo quando iniciei no esporte, estava entrando no mar e veio uma criança negra sorrindo e me olhando, ela chegou perto no inside e disse sorrindo muito: “Eu vou olhar você surfar, tia!’. Olhei sorrindo mesmo sem entender, pois eu era bem iniciante.

Fui remando em direção ao fundo, era um final de semana, o mar estava cheio de pessoas que surfam muito bem, quando eu cheguei no outside e olhei ao meu redor, entendi porque aquela criança negra olhou para mim, iniciante e disse aquilo com aquele sorriso no rosto. Eu era a única pessoa negra ali. E isso é representatividade e ela impulsiona e incentiva pessoas que nos acompanham.

Como descreveria o que o surfe significa na sua vida?

Quando conheci o surfe, foi amor a primeira vista. Desde aquela ondinha empurrada na espuma, não desci mais da prancha e comecei a praticar todos os dias.

Vim de São José dos Campos, do bairro Campos dos Alemães/Dom Pedro II (periferia sul da cidade), passei por muitas dificuldades, tenho problemas com drogas e alcoolismo na família, como a maioria das pessoas de lá.

Minha mudança para Ubatuba (SP) e o encontro com o surfe mudou minha vida, meu rumo. Tive esperança em coisas que nem nos melhores sonhos, poderia imaginar para mim.

Até hoje minha família não faz ideia disso, eles não entendem quando eu falo, porque  nunca viram. Minha mãe ainda não me viu surfar pessoalmente, pela falta de dinheiro tanto dela, como minha. Mas posso dizer que essa iniciativa me deu uma vida nova, me sinto como se eu vivesse fora do eixo. Quando mudei para o litoral, fugi do destino que me traçaram.

Qual sua maior inspiração?

Tenho como inspiração tantas pessoas que eu vi de perto e não quero ser, inspiração do que te leva a fazer escolhas fáceis e erradas. Mas para a minha vida hoje, a Natália de agora, com esse lifestyle, tenho como inspiração, mulheres incríveis como eu.

Atalanta Batista foi a primeira que eu conheci depois que comecei a procurar referências, depois conheci a Luana Soares, Nuala Costa, que me inspiram demais.

Todas elas são mulheres que mantiveram o seu foco, mesmo diante de todas as dificuldades, social, racial, financeira, entre outras.

Inspiração é o que nos dá asas para voar para onde queremos ir.

Qual seu maior propósito dentro do surfe?

Hoje tenho muitos sonhos, mas nenhum deles é só meu. Mesmo surfando, vivendo em Ubatuba, sempre penso na minha família, lá no bairro de onde eu vim. Meu maior medo é ver eles se perderem nas tentações que existem dentro de uma periferia.

É muito fácil seguir seu sonho quando não precisa se preocupar com o seu berço familiar.

Alguns amigos me deram a ideia de fazer criar um perfil no Instagram, pois eles viam essa representatividade em mim, que nem eu enxergava ainda. Então criei esse perfil e nele fui postando meu processo nessa nova vida, minha iniciativa no surfe, minha evolução. Abordo também temas sobre negritude e sobre coisas que é necessário falar.

Quero fazer ainda mais, para levar empoderamento às pessoas ao meu redor e que me acompanham.

Hoje se você me perguntasse o que eu faria se tivesse apoio de marcas e recursos, responderia que investiria ainda mais tempo para conseguir produzir material e para postar na minha página, com o objetivo de continuar incentivando. Também investiria meu tempo em evoluir ainda mais no surfe e com isso, me arriscaria em competições e festivais de longboard. Porque é sobre isso, vibro com isso.

Eu amo surfar, amo a vida que tenho hoje e é incrível o quanto as mulheres e homens de onde eu vim, falam sobre isso e têm até vontade de tentar surfar.

Quando falei de representatividade, é real. E esse é meu objetivo, viver meu sonho trazendo meus irmãos de cor comigo, porque se não, de que vale, né?

Natália Regina é uma jovem surfista que possui uma história difícil e ao mesmo tempo de superação. Através do surfe e de referência de surfistas negras, ela conseguiu se enxergar de uma forma diferente, com esperança, pertencimento e potência. Através dessa representatividade, ela busca inspirar outras meninas e mulheres como ela, a viveram seus sonhos e serem quem elas são.