Rest in Peace

Jean eterno

0

640x695

Jean da Silva deixa saudades. Foto: Arquivo pessoal.

Na noite da última sexta-feira (24/11), a comunidade do surfe entrou em choque com a perda de Jean da Silva, um dos surfistas mais talentosos que o Brasil já conheceu.

Aos 32 anos, Jean foi encontrado morto na residência dos seus pais, em Joinville (SC), depois de ter cometido suicídio. O atleta vinha sofrendo de depressão, uma doença grave e silenciosa que afeta 322 milhões de pessoas no mundo, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). O número representa 4,4% da população do planeta.

No surfe, a depressão não é novidade. Nomes como os ex-tops da elite mundial Mark Occhilupo, Neco Padaratz e Fabio Silva já admitiram publicamente que enfrentaram a doença. Naquela época, a barreira da língua, o afastamento da família e a rotina estressante do Circuito Mundial (pressão por resultados e cobranças de patrocinadores) eram as principais causas do problema.

De acordo com a OMS – que abordou o tema como “mal do século XXI” -, esse índice tem aumentado consideravelmente. Os números atingem 18% a mais do que há dez anos.

Tratada de forma incompreendida por muitos, inclusive por quem é diagnosticado, a doença pode atingir pessoas de qualquer idade, qualquer lugar e qualquer classe social, famosos e anônimos.

A depressão é a principal causa de mortes por suicídio. São cerca de 800 mil casos por ano. Estima-se que a cada 100 pessoas com depressão, 15 delas decidem colocar fim à própria vida. Ainda de acordo com a OMS, o suicídio é a segunda principal causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos.

Em reportagem publicada pelo site da Veja, amigos de Jean comentaram que o atleta não dava sinais de depressão. “Da última vez que conversamos ele estava normal, feliz, brincando com todo mundo”, contou um dos amigos ao veículo.

Porém, de acordo com a psicóloga Elaine Lopes, a ideia equivocada mais comum em relação à depressão é de que ela causa um sentimento de tristeza. “O deprimido não necessariamente precisa ficar sem sair, sem comer, sem tomar banho. Pelo contrário! Muitas vezes ele sai, se arruma, come – às vezes até demais, para tentar ir contra os sintomas: para tentar se sentir forte! E são essas tentativas que desgastam, deprimem e o fazem sentir incapaz, impotente e só”, escreveu Elaine em seu blog no site A Tribuna.

1500x1000

Jean na praia de Maresias (SP), onde competiu pela última vez. Foto: © WSL / Smorigo.

Alguns dos sintomas da depressão são desinteresse por atividades, alteração de peso não intencional, distúrbio do sono, agitação ou apatia constante, fadiga diária, inutilidade ou sentimento de culpa, dificuldade de concentração e ideias suicidas.

Caso seja identificado algum sintoma, é necessário buscar ajuda profissional para identificar o grau da doença e definir o tratamento adequado.

Por se tratar de um problema que se agrava aos poucos, é comum que a doença seja diagnosticada em um quadro já avançado, e às vezes, não sendo tratada com a devida importância. O maior problema é que em apenas 30% dos casos os pacientes recebem um tratamento adequado, e o agravamento da doença pode levar a pessoa portadora ao suicídio.

O diagnóstico adequado deve ser feito por um profissional (psicólogo ou psiquiatra) e os sintomas devem persistir para que a doença seja caracterizada. De acordo com a psicóloga Rosângela Garcia, os sintomas da depressão variam de um indivíduo para outro, mas muitos conseguem exibir uma aparente saúde mental – como mecanismo de defesa –, o que não significa que eles sofram menos.

“Talvez ele tenha dias ruins e dias melhores: a depressão traz altos e baixos para a vida do deprimido. Pode não haver um motivo aparente para as suas alterações de humor. Muitas vezes, a sua alegria superficialmente natural pode ser uma forma de disfarçar seus sentimentos e mostrar-se forte perante os outros”, escreveu Rosângela no site do Jornal Notícias do Estado.

Em mensagem enviada a amigos (e publicada com a autorização da família de Jean), Sidnei da Silva, pai do atleta, desabafou sobre a morte do filho e deixou uma mensagem de conscientização: “Não existe uma coisa pior na vida do que perder um filho, do que perder um irmão… A única coisa que posso dizer a todos é que estou muito feliz por ter tido um filho tão maravilhoso como o Jean era. Viveu uma vida plena. Falecido com 32 anos, mas digo a vocês com certeza que ele viveu mais de 80 anos. Quero agradecer às palavras de todos e dizer que vamos continuar lutando. Agora atenção volta-se cada vez mais forte para o nosso outro filho (Maycon), e queria aproveitar e dizer a todos que têm filhos, que continuem amando-os cada vez mais, com mais intensidade, a cada dia olhando com carinho para todas as suas necessidades e o que eles precisam… Fiquem atentos a todos os sinais, porque o meu filho infelizmente foi acometido de uma doença silenciosa, sorrateira, uma coisa que nos cegou e a gente não percebeu. Cuidem dos seus filhos, olhem, prestem atenção aos sinais, porque isso é uma coisa que pode acontecer com todo mundo. Eu jamais pensaria que isso poderia acontecer na nossa família. A gente sempre acha que coisas ruins acontecem só com os outros, e infelizmente entrou na nossa casa”, disse Sidnei.

1200x800

Entubar em lugares como a Indonésia era uma das suas maiores paixões. Foto: Luana Panek.

Inteligente, carismático, sereno e dono de um surfe muito fluido, Jean obteve muitos resultados expressivos ao longo da carreira.

Conquistou três títulos nas categorias de base do Circuito Brasileiro – Iniciante (1999), Mirim (2001) e Open (2002); venceu três etapas do QS – Fernando de Noronha (2006), Portugal (2008) e Virginia Beach (2012); foi terceiro no Mundial Pro Junior em 2006 e, no mesmo ano, faturou o título catarinense profissional. No ano de 2010, Jean tornou-se o primeiro surfista de Santa Catarina a erguer a taça de campeão brasileiro profissional. Dois anos depois, foi coroado campeão sul-americano da Association of Surfing Professionals (ASP), hoje conhecida como World Surf League (WSL).

Por anos, foi apontado como sério candidato a uma vaga na elite mundial. Chegou a ficar entre 10 primeiros no ranking no decorrer de algumas temporadas, mas não não conseguiu manter o ritmo até o fim do ano.

Em 2017, sem vaga nas etapas com 10.000 pontos do Qualifying Series por não ter terminado a última temporada entre os 100 melhores da divisão de acesso do Mundial, Jean direcionou seu foco apenas nos eventos com 6.000 pontos, competindo na Austrália, Japão, Espanha e Portugal.

Na Indonésia, onde passava boa parte do tempo curtindo as ondas perfeitas do arquipélago, aproveitou para disputar um QS 1.000 em Krui Beach e acabou conquistando o seu melhor resultado no ano, ficando em terceiro lugar. No fim do ano, Jean ainda competiu nas etapas brasileiras, em Itacaré (BA) e Maresias (SP), mas os resultados não foram suficientes para que ele garantisse uma vaga entre os 100 melhores no ranking do Qualifying Series.

A notícia da morte de Jean deixou a comunidade do surfe atônita, mas quem teve a oportunidade de conhecê-lo, jamais esquecerá da sua humildade, educação, carisma e talento, como o Top australiano Adrian Buchan: “Obrigado por me mostrar os atalhos quando fui ao Brasil pela primeira vez. Obrigado por ser sempre amável e disponível. Obrigado por ser um dos melhores hóspedes que já tivemos em casa. Obrigado por compartilhar seu amor pela vida e surfar comigo. E por sempre ter tempo para meus pais e minha irmã. Sinto muito, eu nunca consegui dizer isso nesta vida… mas te vejo na próxima”.

Campeão mundial em 2015, Adriano de Souza também deixou sua mensagem de despedida: “Jean, não sei o que dizer nesse momento de dor. Tu foi uns dos caras que mais puxou a minha evolução na fase amadora. Um surfista de corpo e alma. Descanse em paz”.

Miguel Pupo é outro que lembra com carinho do catarinense: “Ele tinha um apelido especial para cada um de nós. Nas minhas lembranças, você sempre vai estar sorrindo. Descanse em paz, ‘Jeanbush'”.

Conterrâneo de Jean e recém-classificado à elite mundial, Tomas Hermes descreveu o amigo: “Um influenciador direto da minha geração, um cara em quem nos espelhávamos, sem falar no surf! Para, né? O cara flutuava sobre a prancha! Às vezes não temos ideia do quanto um esporte tem um poder de nos unir como família. A família do surf está com o coração apertado, querendo poder falar com ele”, escreveu Tomas.

Em 2012, durante uma entrevista marcante que fiz com Jean, ele contou que chegou a pensar em abandonar a carreira devido aos desgastes nas viagens para competir. Também revelou que ficou traumatizado ao ser assaltado em sua própria residência, depois de vencer o Hang Loose Pro Contest em Fernando Noronha. “Nasci de novo!”, disse Jean, que levou uma coronhada, uma facada e foi ameaçado de morte com a arma apontada para a sua testa.

Veja abaixo alguns trechos da entrevista publicada em novembro de 2012:

622x401

Em 2010, Jean tornou-se o primeiro catarinense a conquistar o título brasileiro profissional. Foto: Pedro Monteiro.

Como o surfe entrou em sua vida?

Meu pai, Sidnei da Silva, pegava onda quando era mais novo e sempre frequentávamos o Balneário Barra do Sul nas férias. Sempre gostei de ficar na água; nadava três vezes por semana e gostava muito de ficar brincando no mar com meu irmão (Maycon), com uma prancha de bodyboard que ganhamos. Em pouco tempo começamos a ficar de pé, buscando fazer qualquer coisa diferente de estar deitado nela. Foi quando ganhei minha primeira prancha de surfe de verdade, isso porque já havíamos quebrado algumas pranchas de body nessas tentativas! Foi bem no meu aniversario de 7 anos (6/2/92) e dada pelo meu pai. Ele disse que eu poderia tomar como uma atividade saudável para o resto da vida e não ficar na areia da praia fazendo castelinhos de areia ou, pior ainda, depois de velho, estar fazendo castelinho de latinhas de cerveja. Foi uma forma carinhosa de me orientar a praticar um esporte saudável, ocupando a mente com algo que valesse a pena, e até mesmo ter um futuro nisso!

Bom, a prancha era zerada e era uma 5’9 Oceano, laminada pelo então shaper Afonso Egert, hoje empresário de surfwear. Essa prancha já tinha uma história antes mesmo de eu ter estreado: era uma prancha nova a partir de uma prancha velha! (risos), provavelmente uma 6’6 que virou 5’9. Ela não tinha envergadura alguma, era uma tábua de passar. Era difícil não imbicá-la na água!!

500x332

Carregado pelo irmão em 2002, depois de vencer um Pro Junior na Ilha do Mel (PR). Foto: Ricardo Macario.

De qualquer maneira, era verão e eu não saía mais da água. Foi quando começamos a fazer várias amizades no mar. Foi aí que conheci Balú e, aos 13 anos, meu velho amigo me convidou para competir em um evento local em Barra do Sul, só por brincadeira. Competi na categoria Estreante (naquela época não havia categoria Grommet ou Infantil). Daí, competia com vários atletas de diferentes idades e tamanhos. Fiquei em segundo lugar. Foram três etapas; venci as duas últimas etapas e fui campeão da Estreante.

Paralelamente, eu também competia nos eventos de natação e treinava três vezes por semana com meu irmão. Certo dia, meu treinador falou pra mim que eu teria de treinar aos sábados também. Virei para o meu pai e disse que não queria mais nadar (risos). Não iria perder o fim de semana de surfe por causa do treino de natação!

Meus pais me apoiaram desde sempre na minha carreira. Lembro certinho dos mínimos detalhes quando meu pai ia me buscar no colégio em Joinville, com um prato de comida no banco da frente que minha mãe tinha preparado para eu comer rapidinho no caminho até o ponto de ônibus para a Barra. Treinava a tarde toda sozinho e no fim de tarde eu voltava a Joinville para estudar e fazer curso de inglês. Foi uma das épocas mais maneiras. Tinha aquela aventura de pegar o ônibus por duas horas sem saber como o mar estava, chegar à praia e não ter ninguém surfando no mar! Era muito bom!

Você sempre foi visto como um atleta muito exemplar, mas teve uma fase sem resultados há alguns anos. O que aconteceu?

Sempre fui e sempre serei visto como um atleta exemplar enquanto estiver nas competições, porque o esporte faz parte de mim. Passei por uma fase difícil em minha vida. Fui assaltado por conta de um evento que venci. Fiquei traumatizado com isso. Lutei muito para conseguir minhas coisas, sempre fui muito focado e dedicado, e depois disso eu não queria mais vencer eventos, com medo de que isso viesse a acontecer novamente. Veio o Jean que as pessoas nunca viam sair à noite e se espantavam com minha presença em baladas, mas eu não via nada de mais naquilo porque eu sabia o que estava fazendo! Uma pena que muitas pessoas olharam isso de uma maneira errada, acabaram apontando dedos e julgando como elas bem entendiam. O bacana foi que isso não durou muito. Botei a cabeça no lugar e segui no meu foco.

1440x850

Jean da Silva passando por dentro da Cacimba do Padre, onde já disputou duas finais do QS, vencendo uma delas (2006). Foto: Daniel Smorigo / WSL South America.

Como foi esse assalto?

Isso aconteceu em 2006, depois que venci o Hang Loose Pro Contest em Fernando de Noronha. Publicaram muitas reportagens em revistas, websites e jornais sobre meu feito. Só que, em uma dessas publicações em jornais, saiu uma nota dizendo que ganhei a premiação equivalente a 200 mil reais, valor total distribuído entre os 96 atletas naquela época. Depois de um ou dois meses, em uma noite tranquila, duas pessoas entraram em minha casa armadas, perguntando sobre o dinheiro. No momento eu não entendi nada porque não podia acreditar que aquilo era um assalto! Levei uma coronhada na cara, fiquei amarrado por muito tempo e sempre sendo intimado pela premiação. Depois de um tempo falando que o único dinheiro que eu tinha comigo estava em minha carteira, eles falaram que iriam cortar meus dedos, e eu dizendo que eles iriam me matar e não achariam nada porque realmente não tinha nada comigo. Quando eles viram que não iriam chegar a lugar algum, um dos assaltantes falou para me apagar! Colocou a arma na minha testa e falou “apaga”. Fechei meus olhos e achei que era o fim. Nada aconteceu! Mais uma vez eles confirmaram que não chegariam a lugar algum com aquilo. Enquanto um ladrão apontava a arma para mim, o outro pegava tudo o que eu tinha no meu armário, como roupas e relógios do meu patrocinador. Mais uma vez ele veio para cima de mim e disse “apaga ele!”. Aí, eu já não tinha mais esperanças; olhei para a arma apontada na minha cara e estava pronto para morrer, já que não tinha o que fazer a não ser esperar para ver como era o outro lado dessa vida. No fim, saíram com algumas roupas e um computador que eu tinha, e me deram uma facada nas costas, muito perto do pulmão. Por sorte eu não morri, pelo corte não ter sido tão profundo. Foi uma das experiências mais pesadas da minha vida. Passei quase um ano tentando absorver isso e acabei não conseguindo competir direito. Mas, graças a Deus, isso passou e tudo ficou para trás! Deparar-se com a morte em uma situação dessas foi algo que me renovou. Nasci de novo!

1304x701

Jean na Praia Brava (SC). Foto: Reprodução.

Chegou a pensar em abandonar o surfe alguma vez na carreira?

Já pensei em abandonar as competições em um ano. Estava competindo muito e surfando pouco. O surfar pouco quer dizer viajar pouco para lugares com ondas boas e viver o real espírito do surfe. Cheguei ao ponto de me sentir sufocado de tantos campeonatos e viagens desgastantes, dormindo mal, passando por inúmeras roubadas, surfando com pranchas emprestadas porque entre as conexões elas se perdiam no caminho. Enfim, muita coisa que não estava curtindo. Quando fiz uma viagem para a Indonésia com meus amigos Marco Giorgi, Loic Wirth, Icaro Ronchi e Cicero Ronchi, minha visão mudou em relação a tudo. Meu surfe evoluiu e acabei competindo muito mais feliz. Uma das coisas que também me incomodava acho que era a questão da cobrança. Eu me cobrava muito em todas as etapas, sempre queria vencer e não admitia a derrota. O engraçado era que as pessoas mais próximas me diziam “Poxa, olha para o Jean, ele perde e não sai da bateria socando a prancha ou indignado!”. Mas, a verdade era que eu ficava muito bravo, só que eu refletia sobre meus erros em particular e não aparentava isso para o povo. Até em eventos que vencia, eu mal comemorava porque achava que o trabalho foi concluído da maneira que eu tinha almejado, e algumas pessoas achavam que eu não parecia estar contente (risos) e me falavam para comemorar porque gostavam de ver a cara de “vencedor feliz” (risos).

Você se arrepende de alguma coisa que fez?

Não me arrependo de nada porque sempre tive uma vida normal! Eu me arrependo de não ter viajado mais para pegar ondas perfeitas (risos).

Clique aqui para ver a entrevista completa.