A começar pelas condições: o litoral brasileiro é ideal para a prática do surfe quase que em sua totalidade. Desde o litoral do Nordeste até as praias da região Sul, existe uma grande variedade de picos que oferecem as condições favoráveis para pegar ondas. Na Argentina, porém, isso não acontece. Tanto a costa atlântica como a região do litoral mesopotâmico do país apresentam dificuldades para os surfistas, que sofrem com o período de inverno rigoroso que limita as condições de treino e até mesmo das ondas.
Dessa maneira, o Brasil já começou com vantagem. A partir da década de 30, o surfe começou a se desenvolver e a se popularizar pelas praias brasileiras com a contribuição dos americanos que passavam pelo Rio de Janeiro (cidade usada como base naval para os Aliados) durante a Segunda Guerra Mundial. Em 1965, surgiu no litoral fluminense a primeira organização de surfe, a “Associação de Surf do Estado do Rio de Janeiro”.
Nessa mesma época, a Argentina estava apenas iniciando seu contato com o surfe. O argentino Daniel Gil, pioneiro no país, apaixonou-se pelo esporte durante viagens aos Estados Unidos e ao Brasil, no início da década de 60. Em 1963, finalmente, ele surfou sua primeira onda em casa, no Balneario Waikiki. Enquanto os argentinos davam suas primeiras remadas em direção às ondas, os brasileiros já organizavam até campeonatos locais.
Por isso, a credibilidade do esporte nos dois países é muito distinta. O Brasil lidera os rankings do circuito mundial masculino, além de dominar as melhores colocações e ter um grande número de atletas considerados verdadeiros fenômenos. A Brazilian Storm marcou a história do surfe e tende a crescer a cada temporada. Em contrapartida, a Argentina não tem sequer um representante disputando o CT.
Os “tablistas” (tradução em espanhol para “surfistas”) argentinos só começam a aparecer nos rankings classificatórios para o mundial. Mesmo assim, de acordo com os dados da WSL (World Surf League), são poucos atletas. Na categoria masculina do WQS, série classificatória, os melhores colocados são Santiago Muniz, no 94° lugar, Leandro Usuna, no 109° lugar e Jose Ignacio Gundensen, no 168° lugar. No feminino, a situação é um pouco melhor: a Argentina tem seu melhor resultado com Josefina Ane, no 49° lugar no ranking classificatório.
Família dividida
As diferenças entre Brasil e Argentina mediante ao cenário do surfe são tantas que chegaram até a “dividir” famílias. Santiago Muniz, principal nome argentino, é o exemplo vivo disso. O atleta já derrotou grandes competidores como o japonês Kanoa Igarashi e é bicampeão mundial pela ISA (International Surfing Association). Esse sucesso, porém, poderia ser verde e amarelo. Mesmo nascido na Argentina, Muniz e sua família se mudaram há quase 30 anos para Bombinhas, em Santa Catarina.
A conexão com o Brasil é tanta que seu irmão, Alejo Muniz, que também se tornou surfista profissional, escolheu defender a bandeira brasileira e representar o Brasil nos campeonatos. Pode-se dizer, no entanto, que as diferenças entre os irmãos Muniz vão além da nacionalidade. Alejo, o mais velho, já participou de várias temporadas do Championship Tour e chegou a ocupar a terceira posição no ranking.
Santiago também tentou trocar de nacionalidade para competir pelo Brasil. No entanto, não teve o mesmo resultado que o irmão mais velho e permaneceu defendendo a Argentina. O atleta representará a bandeira argentina nos Jogos Pan-Americanos de Lima 2019 e luta pela classificação para as Olimpíadas de Tóquio, em 2022.
Coração brasileiro
O surfista profissional argentino Jose Ignacio Gundensen, conhecido como Nacho, também vive de perto a relação entre Argentina e Brasil no surfe. Com as condições de treino limitadas na costa argentina devido ao clima, o atleta começou a treinar nas ondas do litoral catarinense com apenas 13 anos.
Apesar de ter nascido em Mar Del Plata, costa atlântica argentina, o garoto viu no Brasil um lugar para evoluir no esporte. A maior frequência de competições realizadas na costa brasileira possibilitou ao tablista mais experiência. “Minha ideia de ir para o Brasil principalmente foi fugir do frio da Argentina no inverno e manter um ritmo de competição que na Argentina não consigo ter, porque só tem competições no verão”, ele afirma em entrevista ao Torcedores, com o idioma português na ponta da língua. Ele, que atualmente tem o litoral nordestino como local de treino, já passou pelas praias de Florianópolis, Bombinhas e muitas outras.
Com o tempo, Gundensen se aproximou dos surfistas brasileiros e chegou até a morar com alguns deles durante as temporadas de treino. A rivalidade entre Brasil e Argentina, porém, nunca o afetou no esporte. “O Brasil sempre me recebeu da melhor maneira e tenho muitos amigos brasileiros”, ele diz.
Gundensen é otimista em relação ao futuro do surfe argentino. “Ainda não é um esporte muito reconhecido, e isso complica a vida dos surfistas que querem viver do esporte, mas pouco a pouco está melhorando”, ele afirma.
Jornada semelhante
O Brasil já viveu, de maneira aproximada, o cenário no qual a Argentina se encontra. Até alcançar o patamar que hoje ocupa, os surfistas brasileiros demoraram para se consolidar.
No mundial amador, em 1988, Fabio Gouveia trouxe o primeiro título brasileiro nas competições que envolviam atletas de todo o globo. Os brasileiros, então, seguiram disputando os torneios, raramente ameaçando o domínio norte-americano, havaiano e australiano. Apesar disso, esse período foi fundamental para o amadurecimento do esporte no país, que em 2014 garantiu seu primeiro título oficial do Championship Tour e não parou mais de crescer.
Com um desempenho ainda em desenvolvimento, o surfe argentino vive esse período de amadurecimento. Avançando gradativamente, não atrai tanto os olhares dos patrocinadores internacionais. Sem destaque entre os demais, as marcas não dão crédito para os atletas e, muitas vezes, falta investimento. Essa situação dificulta ainda mais o crescimento do esporte no país.
Brasileiros e argentinos têm, no final das contas, uma luta em comum: a busca por espaço do surfe sul-americano como um todo. Apesar da vantagem brasileira, a troca de experiências entre os dois países tem tudo para fugir da clássica rivalidade que protagoniza suas relações. A eletrizante disputa com nossos “hermanos”, então, perde forças em meio a água salgada dos oceanos e se transforma em união. Talvez, tudo que Pelé e Maradona precisavam era um bom banho de mar.
Aline Simon é estudante de jornalismo na PUC-PR e colaboradora do site Torcedores.